Todos os anos, no dia 2 de novembro, recordamos a morte dos nossos irmãos defuntos. Morte para todas as idades. E vamos ao cemitério. Enchemos o cemitério de vida, de luz e flores, de orações silenciosas e mensagens de saudade. E acreditamos que esses nossos irmãos continuam a viver no tempo eterno de Deus.
Porquê? Porque temos medo do nada; porque nos recusamos a aceitar que o cemitério seja a nossa última morada; porque nos revoltamos contra a ideia de que as últimas pazadas de terra sobre o nosso caixão encerrem “toda a questão”.
E a “questão” é esta: o amor não pode acabar no cemitério e ser enterrado com o nosso cadáver.
O amor é demasiado humano para ser só humano: “Clama por eternidade” 1; “Visa a eternidade” 2. E Gabriel Marcel: “Amar alguém é dizer-lhe: Tu não morrerás”; “Onde há amor, a morte tem que ser definitivamente vencida” 3.
Eu não posso morrer para sempre…
Tu não podes morrer para sempre…
Se vamos morrer para sempre: o amor é a mais profunda frustração; a morte reduz a nada o que de mais belo produziu o universo; o “Big-Bang” não passa de um grande aborto; e falar em sentido da vida não passa de uma grande gaffe.
Se vamos morrer para sempre, se o nosso amor vai morrer para sempre, então a “Divina Comédia” tem o valor de um romance de aeroporto, Dante enganou-se, e esta “história” não passa de uma ópera bufa que até faz rir.
Vida para sempre ou morte para sempre? Amor eterno ou o nada eterno? Sentido ou absurdo? Esperança ou desespero?
Nós vamos morrer para sempre – dizem –, mas continuamos a viver na memória da nossa glória, da nossa fama e das nossas realizações. E surgem, alienantes, elogios fúnebres, discursos inflamados de exaltação cívica, citações biográficas, números e estatísticas.
Quando a pessoa se perde na memória da sua história, o amor perde-se também. É o vazio total, ato final desta comédia!
Porque o amor são pessoas. Sem pessoas, o amor não passa de uma palavra oca do linguajar oco das cantilenas festivaleiras.
Mas o fundamento último do amor e da pessoa é Deus. E “quem simplesmente se quer livrar de Deus talvez se transforme apenas em coisa” 4.
“Sem uma reposta à questão de Deus, a morte continua um enigma cruel” 5.
Em momento nenhum o homem é uma “coisa”, nem sequer no seu enterro. Deus existe.
E se este Deus “amou e ama o ser humano, então é claro que o seu amor consegue o que o nosso amor anseia: conservar viva a pessoa amada para além da morte (…). Agarra-te a Cristo, e Ele atravessa contigo a noite da morte que Ele mesmo atravessou. Assim a imortalidade ganha sentido” 6. E o nosso amor viverá para sempre.
É o que pensa o salesiano Cassiano Guimarães, poeta do amor e da santidade:
Um dia/Quando chegares à porta do meu quarto/E ninguém responder à tua voz,/ E alguém que passar ao pé da porta muda/Te disser que eu já morri,/ Não, não vás acreditar!/ Como pode ser que a fome insaciável/ Do nosso amor/ Possa ter fim nas sombras que ficaram?/ Ou alimentar-se, como último recurso,/ Das lágrimas da saudade?/ Não, não!/ Bate que eu ouço-te… 7
E, libertos da morte e do tempo, entraremos na eternidade, para celebrar eternamente o “Banquete do amor”…
- Joseph Ratzinger (Bento XVI), Esplendor da Glória de Deus – Meditações para o Ano Litúrgico, Ed. Franciscana, Braga, s/d., p. 182.
- Bento XVI, Deus é Amor, n.º 6.
- Gabriel Marcel, Le Mystère de l’Être, Tome II, Foi et Réalité, Paris, Aubier, 1981, pp. 154-155.
- Tomás Halik e Anselm Grün, O abandono de Deus – Quando a crença e a descrença se abraçam, Ed. Paulinas, Prior Velho, 2017, p. 16.
- Joseph Ratzinger (Bento XVI), ob. cit., p. 185.
- Ibidem, p. 185.
- José Cerca, Cassiano Guimarães, Poeta do amor e da santidade, Ed. Salesianas, Porto, 2013, p. 188.
Publicado no Boletim Salesiano n.º 565 de Novembro/Dezembro de 2017