Caridade e doçura: O grande dom de São Francisco de Sales

Mensagem do Reitor-Mor aos leitores do Boletim Salesiano.

“Que a caridade e a doçura de Francisco de Sales me guiem em tudo”. Esta foi a resolução que Dom Bosco tomou  no início da sua vida de sacerdote educador. E é nesta referência a Francisco de Sales que a pedagogia salesiana toma o seu nome.

Uma professora escreveu: «Todos os dias dou a volta às turmas. Antes da Covid, quando entrava, todos os alunos se levantavam e se apinhavam à volta de mim. Agora tal já não acontece. As crianças do quarto e quinto anos sentem o impulso de correr para mim e reprimem-no. As do primeiro ano, ao invés, ficam paradas, sem reação, frias. Isto preocupa-me muito quanto à sua futura capacidade de manifestar a afetividade». Outra acrescenta: «Temos de enfrentar um evidente aumento da agressividade entre as crianças do 2.º e 3.º ciclos». «Não te aproximes dos outros!», dizem os pais às crianças.

Que carga de solidão, depressão e insegurança levarão consigo por muito tempo as crianças de hoje? Qual é a melhor intervenção pedagógica?

«Quem se sente amado, amará», dizia Dom Bosco. Mas a ambilidade e a bondade nunca são virtudes espontâneas.

Também para Dom Bosco a doçura não era um dote natural. Afirmava que ao despertar do «sonho» dos seus nove anos tinha as mãos a doer da pancada que tinha dado aos jovens que diziam blasfémias.

Como adolescente defendeu com violência o amigo Luís Comollo. Conta ele mesmo: «Quem disser mais alguma asneira, terá de se haver comigo. Os mais altos e descarados puseram-se à minha frente, enquanto duas botefadas estalavam na face de Luís. Perdi a luz dos olhos e deixei-me levar pela fúria. Não podendo lançar mão de um pau ou de uma cadeira, com as mãos agarrei um daqueles rapazolas pelas costas, e servindo-me dele como de um cacete comecei a dar pancada nos outros. Quatro caíram por terra e os outros fugiram a gritar».

Mais tarde, o bom do Luís repreendeu-o por aquela veemente exibição de força: «Basta. A tua força assusta-me. Deus não ta deu para massacrar os teus companheiros. Perdoa e faz bem a quem te faz mal, por favor». Era quase o eco da personagem do sonho que havia dito: «Não é com a pancada, mas com a doçura e o amor que deves conquistar a sua amizade».

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João aprendeu assim não só como se perdoa, mas como é importante dominar-se. Nunca mais esquecerá. Levará sempre por toda a parte o sopro da mansidão e ninguém saberá quanto lhe custará sempre, mas por isso, segundo as palavras de Jesus, “possuirá a terra”.

«Recomendo-vos sobretudo o espírito de doçura, que é o que aquece o coração e conquista as almas» S. Francisco de Sales

Os panegíricos de S. Francisco de Sales, que por regra se faziam no seminário, fizeram-no refletir. Segundo o seu Testamento espiritual, tomou como quarto propósito da ordenação sacerdotal a fórmula: «A caridade e a doçura de S. Francisco de Sales me guiem em tudo».

E quando teve de escolher um nome para o nascente Oratório não teve dúvidas: «Chamar-se-á Oratório de S. Francisco de Sales» e mais tarde aos primeiros jovens que compartilharão a sua vida: «Chamar-nos-emos salesianos». A razão? «Porque a prática dquele nosso ministério exigindo grande calma e mansidão, nos havíamos colocado sob a proteção deste Santo, a fim de que nos alcançasse de Deus a graça de poder imitá-lo na sua extraordinária mansidão e na conquista das almas».

A doçura, esta virtude «mais rara do que a perfeita castidade», é «a flor da caridade», é a caridade posta em prática, havia ensinado S. Francisco de Sales. «Recomendo-vos sobretudo o espírito de mansidão, que é o que aquece o coração e conquista as almas», escrevia a uma jovem abadessa.

No fim de uma guerra que, durante quatro longos anos, havia pelo menos ignorado e esquecido esta virtude nas relações entre os povos, o reitor-mor padre Paulo Albera dedicou à doçura uma carta circular inteira. A virtude da doçura exige dominar a vivacidade do próprio temperamento, reprimir todo o movimento de impaciência e proibir à própria língua pronunciar uma só palavra ofensiva para com a pessoa com quem se trata. Esta virtude exige a recusa de todas as formas de violência no comportamento, nas propostas e nas ações». Ao padre Paulo Albera parecia impossível esquecer, no quadro da doçura que nos foi deixado, «um sinal daquele olhar sereno e cheio de bondade, que é o verdadeiro e límpido espelho de uma alma sinceramente doce e só desejosa de fazer feliz quem dela se aproxima».

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Doce não é sinónimo de melífluo e adocicado, que são as suas falsas caricaturas. Doçura não é de modo nenhum fraqueza. A violência descontrolada é fraqueza. A amabilidade é força pacífica, paciente e humilde. Dom Bosco conciliava, na sua atuação, a doçura e firmeza.

Este espírito de bondade, doçura e mansidão gravou-se nos primeiros salesianos e pertence à nossa mais antiga tradição. Tudo isto indica que não podemos descurá-lo, e muito menos perdê-lo, com o risco de prejudicar significativamente a nossa identidade carismática.

Para muitos dos nossos jovens, a experiência mais recordada do encontro com a Família Salesiana no mundo é muitas vezes a familiaridade, o acolhimento com que se sentiram tratados. Em suma, o espírito de família. Nos primeiros tempos falava-se de um “quarto voto salesiano”, que incluía a bondade (antes de tudo), o trabalho e o sistema preventivo.

Não podemos imaginar uma presença salesiana no mundo, uma presença das Filhas de Maria Auxiliadora, dos Salesianos de Dom Bosco e dos atuais trinta e dois grupos que constituem a Família salesiana de Dom Bosco, que não tenha a caraterística da bondade como elemento distintivo; ou pelo menos deveríamos tê-la, como quis recordar o Papa Francisco com a sua inspiradora expressão “opção Valdocco”.

Trata-se da nossa opção pelo estilo salesiano feito de amabilidade, afeto, familiaridade e presença. Temos um tesouro, um dom recebido de Dom Bosco, que agora nos compete reavivar.

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Publicado no Boletim Salesiano n.º 591 de março/abril de 2022

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