Rosto de Cristo, rosto cheio de misericórdia

Continuando com a nossa exploração contemplativa do rosto de Jesus Cristo, fixemos agora o nosso olhar num outro traço muito caraterístico seu, que revela claramente o rosto de Deus, seu Pai e de todos: o de ser um rosto cheio de misericórdia.

A atitude de Jesus para com os pecadores

No Antigo Testamento, podemos seguir uma linha bastante consistente que estabelece uma clara separação entre os justos, isto é, aqueles que cumprem a vontade de Deus manifestada através da Lei de Moisés, e os injustos ou pecadores, isto é, aqueles que não cumprem essa vontade e desprezam a Lei. Os primeiros são vistos como agradáveis a Deus e abençoados por Ele, os segundos como detestados e mesmo odiados por Ele (Sl 10,5; Sir 12,6).
Em frases bastante grosseiras, chegam a pedir que Deus “quebre os dentes dos ímpios” (Sl 3,8), que “os pecadores serão todos exterminados; a descendência dos maus será destruída” (Sl 37,38), e ainda que “os ímpios cresçam como a erva e floresçam os que praticam a maldade, serão exterminados para sempre” (Sl 92,8). Nestes termos, o justo exprime o seu desejo mais ardente: “Desapareçam da terra os pecadores!
Os ímpios deixem de existir!” (Sl 104,35); “Ó Deus, faz com que os ímpios desapareçam!” (Sl 139,19).
Naturalmente, isto reflete-se no modo como os justos se comportam em relação aos pecadores. “Não me deixes escorregar para a maldade nem praticar a iniquidade com os ímpios, nem tomar parte em seus lautos banquetes (Sl 141,4) é o apelo do salmista, que exprime claramente este comportamento. O pecador, separado de Deus, devia ser evitado, e nada devia ser partilhado com ele, muito menos a mesa, sinal típico de comunhão e amizade.
No tempo de Jesus, este modo de pensar e de agir estava em pleno vigor. Assim, no Evangelho segundo São João, lemos estas palavras pronunciadas pelos fariseus no calor da sua polémica com Jesus: “Mas essa multidão, que não conhece a Lei, é gente maldita!” (por Deus, claro) (Jo 7,49). A atitude de desprezo daqueles que se consideravam justos, corretos aos olhos de Deus, para com os pecadores, essa categoria de pessoas que incluía uma grande parte do povo, encabeçada pelos cobradores de impostos e pelas prostitutas, é bem evidenciada pela parábola dos dois homens que sobem ao templo para rezar. Na introdução, o evangelista adverte que Jesus contou tal parábola “a respeito de alguns que confiavam muito em si mesmos, tendo-se por justos e desprezando os demais” (Lc 18,9).
Neste contexto, o modo de atuar de Jesus revela-se verdadeiramente subversivo do status quo vigente desde há séculos: acolhe os pecadores de forma benevolente e compassiva, oferecendo-lhes a companhia e o perdão de Deus. Chega mesmo a partilhar a mesa com eles (Mt 9,10; Mc 2,15; Lc 5,29; 15,1-2), contrariando assim os costumes mais arraigados e provocando o escândalo dos justos (Lc 15,1-2).
Também perante esta situação, Ele reage de acordo com um princípio, mas sobretudo de forma operativa.
O princípio, que exprime a sua posição “assimétrica” e “desequilibrada” perante o conflito entre justos e pecadores, encontramo-lo enunciado pelos evangelhos sinópticos na narração da vocação de Levi, também ele oficialmente pecador, pois era cobrador de impostos. À murmuração dos fariseus que o veem sentar-se à mesa com muitos publicanos e pecadores, responde afirmando, não sem uma certa solenidade: “Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes. Ide aprender o que significa: Prefiro a misericórdia ao sacrifício. Porque Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores.” (Mt 9,12-13; cf. Mc 2,17; Lc 5,31-32).
Ainda no plano do princípio, está a série das três parábolas que conta para justificar o seu modo de atuar, criticado pelos adversários: a da ovelha perdida, a da moeda perdida e a do filho extraviado (Lc 15,4-32). A terceira é, sem dúvida, a mais expressiva. Sobretudo se tivermos em conta o contraste evidenciado entre os dois irmãos, que personificam precisamente os pecadores (o filho mais novo) e os justos (o filho mais velho). A solicitude sem limites do pai para com o primeiro, que contradiz toda a lógica vigente na religiosidade de Israel, reflete com clareza meridiana o pensamento de Jesus neste domínio.
Mas, como dissemos, é sobretudo o comportamento de Jesus em relação aos pecadores que revela o seu pensamento. Há dois casos nos Evangelhos que são particularmente representativos: o da pecadora que lava os pés em casa do fariseu Simão (Lc 7,37-50) e o da mulher apanhada em flagrante adultério (Jo 8,1-11).
Em ambos os casos, a atitude de Jesus é impressionante. Não centra a sua atenção no pecado, mas sim na pessoa que precisa de ser libertada dele. Com uma serenidade e uma espécie de majestade que espantam, envolve as duas mulheres no grande abraço da misericórdia sua e de Deus, arranca-as do túmulo em que estão encerradas, restituindo-lhes a vida: “Os teus pecados estão perdoados”, diz ele com uma certeza desconcertante à primeira, irremediavelmente acorrentada ao seu modo de vida na prostituição; “Eu também não te condeno; vai e doravante não tornes a pecar”, anuncia à segunda, que treme a seus pés à espera da lapidação que, segundo a Lei, merecia. E a ambos abre novos horizontes, cheios de possibilidades de vida e de futuro.
Mesmo no último momento da sua vida terrena, Ele, lutando na angústia e no sofrimento da cruz, não só diz a Deus: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23,46), mas também diz: “Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem” (Lc 23,34).

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A raiz última: o Pai das misericórdias

No rosto de Jesus resplendia luminosa e atraente, portanto, a luz da misericórdia. Mas, na realidade, neste como em tantos outros aspetos, a luz que d’Ele emanava provinha d’Aquele com quem mantinha uma relação de intensa intimidade filial.
De facto, o Deus com quem Jesus se relacionava, e cujo rosto tornava visível e próximo, era um Deus que ele aprendera a conhecer e a amar desde a sua infância, no ambiente crente do seu povo. A imagem desse rosto vinha-lhe, pois, de longe, e tinha-lhe chegado através de uma longa e atribulada experiência de séculos. Recebeu-a já bastante madura, mas ainda a precisar de retoques. Ele retocou-o fazendo escolhas, descartando certos traços e aceitando e melhorando outros.
Quem lê com alguma atenção os vários escritos do Antigo Testamento, acaba por identificar a presença de duas vertentes no modo como o rosto de Deus é retratado. Uma delas é a que prevê um Deus “bifronte” e “simétrico” que, como já foi referido, reage ao comportamento dos homens amando ou odiando, aceitando ou rejeitando, abençoando ou amaldiçoando, conforme sejam justos ou injustos. Além disso, este seu rosto aparece mais do que uma vez marcado por traços de violência e crueldade. É um Deus vingativo que aprova e chega mesmo a ordenar a vingança por ofensas recebidas (por exemplo, 1 Sam 15,1-3). Compreende-se, assim, a reação dos marcionitas, os hereges dos primeiros séculos que repudiavam o Antigo Testamento porque, segundo eles, transmitia uma tal imagem de Deus, inaceitável para um seguidor de Jesus Cristo.
Há, no entanto, no Antigo Testamento uma outra vertente, talvez menos consistente no início, mas depois progressivamente mais resoluta, que esboça o rosto de JHWH como o de um Deus “assimétrico”, que ama os pecadores e os chama à conversão, indicando-lhes o caminho de regresso. É o que se encontra frequentemente nos escritos proféticos, mas também nos Salmos. “O SENHOR é bom e justo;
por isso ensina o caminho aos pecadores”, declara o Salmo 25,8. Há textos que exprimem esta vertente de forma particularmente clara, entre eles Is 1,18: “Vinde agora, entendamo-nos – diz o SENHOR. Mesmo que os vossos pecados sejam como escarlate, tornar-se-ão brancos como a neve. Mesmo que sejam vermelhos como a púrpura, ficarão brancos como a lã”, ou o de Ez 33,11: “Por minha vida – oráculo do Senhor DEUS – não tenho prazer na morte do ímpio, mas sim na sua conversão, a fim de que tenha a vida”.
É do Deus da misericórdia que o Antigo Testamento fala mais de uma vez (Ne 9,19.28; Sl 40,11; 50,1; 69,16; Is 63,7; etc.), usando uma expressão que leva a pensar nele mais na linha materna do que na paterna. De facto, a misericórdia, que em hebraico se chama rahamîm, remete etimologicamente para o seio materno (rhm).
Um dos livros em que este rosto de JHWH é representado de forma mais viva é o de Jonas. Nele, JHWH aparece como Deus de todos os povos, preocupado com o bem e a salvação também daquele povo que outrora tinha sido dominador e opressor de Israel, e envia o seu mensageiro para chamar Nínive, cuja malícia se tinha levantado contra Deus, à conversão (Jn 1,1), para que pudesse escapar à destruição. O epílogo é a conversão efetiva da cidade e a consequente “conversão” de Deus: “Deus viu as suas obras, como se convertiam do seu mau caminho, e, arrependendo-se do mal que tinha resolvido fazer-lhes, não lho fez” (Jn 3,10). Apesar do Profeta que, num diálogo elaborado com fina ironia pelo autor, se queixa indignado: “Ah! SENHOR! Porventura não era isto que eu dizia quando ainda estava na minha terra? Por isso é que, precavendo-me, quis fugir para Társis, porque sabia que és um Deus misericordioso e clemente, paciente, cheio de bondade e pronto a renunciar aos castigos” (Jn 4,2).
É este o Pai bom e misericordioso que Jesus torna presente através do seu comportamento para com os “infelizes”, isto é, para com aqueles que são humanamente indignos de amor e de solicitude, porque se tornaram assim por culpa própria.

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Duas parábolas muito eloquentes

Talvez não haja nos Evangelhos uma passagem mais eloquente a este respeito do que a parábola do “filho pródigo” ou, como outros preferem chamar-lhe, do “Pai misericordioso” (Lc 15,12-24). Ao filho que se extraviou, batendo insolentemente com a porta na cara do pai, declarando-o morto ao exigir a sua parte da herança e, depois, dissipando os seus bens numa vida dissoluta, o pai espera-o não como humanamente seria de esperar, mas de uma forma totalmente perturbante: “Quando ainda estava longe, o pai viu-o e, enchendo-se de compaixão, correu a lançar-se-lhe ao pescoço e cobriu-o de beijos” (15,20), e não contente com isto “disse aos seus servos: ‘Trazei depressa a melhor túnica e vesti-lha; dai-lhe um anel para o dedo e sandálias para os pés. Trazei o vitelo gordo e matai-o; vamos fazer um banquete e alegrar-nos” (15,22). O pintor Rubens compreendeu bem o sentido profundo da história quando, como salientam os comentadores, ao representar o encontro entre o pai e o filho, deu a uma das mãos colocadas sobre os ombros do filho um aspeto masculino e à outra um aspeto feminino. O Deus da parábola é, de facto, o Deus do “ventre materno” prefigurado na “misericórdia-rahamîm” do Antigo Testamento.
Na parábola, podemos ver como Jesus se apropriou e levou ao auge aquela vertente do Antigo Testamento que delineava o rosto de JHWH como o rosto de um Deus “assimétrico”, que não ama os bons e odeia os maus, mas ama com um amor benevolente a todos sem distinção e sem condição. Um Deus “gratuito”, portanto, que “é bom até para os ingratos e os maus” (Lc 6,35).
Há no discurso programático de Jesus, o chamado Sermão da Montanha, uma frase que pode ser considerada como o ponto final ou, se quisermos, o ponto mais alto de chegada, da vertente que acabámos de mencionar. É aquela em que Jesus diz: “Ouvistes o que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem. Fazendo assim, tornar-vos-eis filhos do vosso Pai que está no Céu, pois Ele faz com que o Sol se levante sobre os bons e os maus e faz cair a chuva sobre os justos e os pecadores […]. Portanto, sede perfeitos como é perfeito o vosso Pai celeste” (Mt 5,43-48).
A perfeição do Pai celeste que é proposta como modelo não consiste, como é evidente, na plenitude do ser, mas em “fazer nascer o sol sobre os maus e sobre os bons” e em “fazer chover sobre os justos e sobre os injustos”. Por outras palavras: em ser um Deus “assimétrico”, que quer o bem de todos sem distinção, representado por Jesus em dois fenómenos atmosféricos que são objeto da experiência quotidiana. Dificilmente se poderia ter delineado de forma mais eloquente o rosto do Deus da misericórdia.
Com palavras diferentes, que não devem, no entanto, ser tomadas como uma definição concetual, mas antes como um enunciado daquilo que os discípulos experimentaram na história de Jesus, a primeira carta de João dirá mais tarde que “Deus é amor” (1 Jo 4,8.16), entendendo por “amor (agápe)” precisamente o da benevolência gratuita.
Na mesma linha da parábola do “Pai misericordioso” de Lc 15,12-41 está a do Bom Samaritano de Lc 10,30-37. Com ela, Jesus quis propor uma linha fundamental de conduta – “Vai e faz o mesmo” (10,37) – e, ao fazê-lo, coloca diante dos nossos olhos a figura do “irmão misericordioso”. Ele é o samaritano, o inimigo desprezado por pertencer a um povo bastardo e infiel, na opinião dos judeus, aquele que, ao contrário dos homens do culto, se deixa tocar até ao âmago pela desgraça do homem deixado meio morto à beira da estrada. E é esta emoção visceral que o impele a “fazer-se próximo” e a “usar de misericórdia para com ele”, tornando-se assim efetivamente seu irmão.
Sem descurar o valor ético da parábola, os Padres da Igreja interpretaram-na também em chave teológica: o samaritano sensível e misericordioso é o próprio Deus, que em Jesus se inclina sobre a humanidade ferida e cuida dela. N’Ele, faz-se irmão terno e solícito de cada ser humano nas suas necessidades, tornando visível o seu rosto, um rosto verdadeiramente cheio de misericórdia.

(NPG 2004-08-34)

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