José Milhazes, A Mensagem de Fátima na Rússia

O jornalista José Milhazes viveu 38 anos na Rússia. Publicou em maio de 2016 o livro “A Mensagem de Fátima na Rússia”, para o qual investigou os arquivos da ex-União Soviética, e onde revela muitas informações e documentos inéditos. Publicamos um excerto da entrevista que deu ao Programa Ecclesia da Antena 1 transmitido no final do ano do Centenário das Aparições.

Ícone de Kazan foi adquirido pelo chamado “Exército Azul de Nossa Senhora” e enviado para Fátima, onde permaneceu entre 1973 e 1993

Falar da mensagem de Fátima na Rússia é perceber o percurso sinuoso que a Igreja Católica fez neste território?

A Igreja Católica nunca foi muito numerosa na Rússia, dado que a principal Igreja é a Igreja Ortodoxa. No Império Russo existiam certas limitações para professar outras religiões. Mas tinha uma grande importância, principalmente no setor da educação e da instrução. Antes da revolução comunista. Depois, como todas as outras confissões religiosas, passou a ser perseguida. Os templos no que depois foi a União Soviética, foram praticamente todos fechados. Alguns que tiveram sorte foram transformados em espaços culturais e desportivos. A Basílica católica de Moscovo […] salvou-se porque foi transformada num estúdio de gravação de música. Muitos foram […] arrasados. […]

Com a revolução de 1917 houve uma mudança na forma como a Igreja Católica se manifestou no território Russo?

Sim. Em primeiro lugar devido às ondas de repressão, que não poupavam ninguém. Não existia nenhuma religião que fosse mais ou menos útil. A religião só foi útil, a ortodoxa e o judaísmo, na II Guerra Mundial, pois Estaline necessitava urgentemente de ajuda ocidental quando os nazis estavam às portas de Moscovo e talvez aí ele se tenha lembrado que Deus, em quem ele não  acreditava, pudesse ajudar… Nesse momento ele dá uma certa liberdade de movimentos à Igreja Ortodoxa […] e a outras confissões religiosas que poderiam alcançar apoio nas comunidades no estrangeiro, na luta contra os alemães.

Neste contexto de perseguição e mártires, como é que a mensagem de Fátima vai permeando estas fronteiras que se erguiam de forma tão incisiva?

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A mensagem de Fátima chega à Rússia, com maior intensidade, a partir da II Guerra Mundial. Quando existem russos que ficam no ocidente e se convertem ao catolicismo […]. Muitos sacerdotes e bispos do ocidente levaram a cabo autênticas ações que podiam ter sido retiradas de livros de espionagem e aventura para realizarem ações proibidas. O caso da consagração da Rússia é exemplo disso, realizada por um bispo eslovaco de uma forma muito original – esse relato consta do meu livro. Além disso Fátima transformou-se num centro de luta contra o ateísmo comunista, devido a inúmeros fatores como a ação do padre húngaro Condor e a criação do Exército Azul. Prisioneiros que eram enviados para o Gulag, católicos, transmitiam a mensagem de Fátima aos outros prisioneiros […]. Dava 10 anos de prisão, e existem casos em que isso de facto aconteceu. Mas era claramente um sinal de que [a mensagem] ia chegando, inclusive, a grupos de crentes ortodoxos que tinham ordens para não [a] reconhecer. Contudo difundiam-na e acreditavam que iria ter um papel fundamental na queda do regime comunista. […]

Que importância teve o assinalar do Centenário de Fátima envolvendo a Rússia?

No dia 17 de julho de 2017, no Cazaquistão, onde existe uma igreja que tem uma imagem da Nossa Senhora de Fátima, vinda da Cova de Iria – em praticamente todas as igrejas católicas russas existe uma imagem da Nossa Senhora de Fátima –, foi feita uma consagração de alguns países a Fátima, uma nova consagração. E para os católicos desses países, de rito bizantino, a mensagem de Fátima continua muito atual e é muito importante. […]

O ícone da Nossa Senhora de Kazan teve importância na presença da Igreja Católica na Rússia. Pode traçar o seu percurso, até ao ano de 2004, quando por vontade do Papa João Paulo II foi entregue a Moscovo.

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A figura de Nossa Senhora na Rússia é tão importante como para os católicos portugueses. Diz-se mesmo que a Rússia é também um país mariano. Que é protegida nos seus quatro lados por quatro ícones de Nossa Senhora.  O ícone da Nossa Senhora de Kazan protege o lado leste pois apareceu na cidade de Kazan que fica a 600 km a sudeste de Moscovo. Esta relíquia desapareceu na Rússia em 1904, foi roubada do templo de Nossa Senhora de Kazan em São Petersburgo, deu-se a revolução comunista e com as perseguições alguns sacerdotes e russos leigos que foram para o ocidente tentaram salvar algumas das grandes relíquias ortodoxas. Apareceu primeiro em Inglaterra e depois nos Estados Unidos. Em 1972 o Exercício Azul, em Fátima, ergue um hotel e uma igreja, em baixo de rito latino, em cima de rito ortodoxo, para que o ícone seja aí colocado. Poucos lá iam pois poucos sabiam da sua existência. Com a exigência de que quando a guerra terminasse o ícone regressasse. Um primeiro passo é feito após a queda do comunismo, em fevereiro de 1992, quando o ícone é entregue ao Papa João Paulo II para que o devolvesse à Igreja Ortodoxa. Como as relações na altura estavam muito tensas, o Papa mandou construir uma pequena capela bizantina no Vaticano onde mantinha o ícone para o entregar à Rússia. Em 2004, João Paulo II, decidiu enviar o Cardeal Kasper, encarregado na altura do diálogo entre Cristãos, e entregá-lo, de forma solene, no Kremlin. Este ícone não é o original mas uma cópia do século XVII. O original ter-se-á perdido.

Podemos ver este ícone como um símbolo de resistência?

Penso que sim. Resistência e união entre católicos e ortodoxos. É a mesma mãe de Deus.

A MENSAGEM DE FÁTIMA NA RÚSSIA
José Milhazes
Aletheia Editores, 2016, 188 páginas

Publicado no Boletim Salesiano n.º 568 de Maio/Junho de 2018
Excerto da entrevista de José Milhazes ao Programa Ecclesia da Antena 1

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