“O desejo não é nosso, é-nos dado”
Lisboa. Saímos das nossas casas como peregrinos.
À hora de “Laudes” ainda estamos entrelaçados na malha urbana.
Somos muitos milhares a correr ansiosamente num labirinto de semáforos intermitentes, ao ritmo da orquestra cacofónica das sirenes, buzinas e rugidos dos motores, na terra e no ar, onde grandes aviões, de tempos a tempos, sibilam entre as nuvens.
Somos leigos, habitantes do mundano, em saída e no encalço de uma experiência mística e espiritual.
Estamos no dia 25 de novembro, dia de Santa Catarina de Alexandria, padroeira dos estudantes, filósofos e professores. Um dia magnífico, ocasião soalheira em que sobre rodas nos entregamos a 500 quilómetros e 6 horas de romagem em direção ao nordeste transmontano.
O nosso destino é o Mosteiro Trapista de Santa Maria da Igreja em Palaçoulo, um lugar singular na topografia mirandesa, equidistante das Vilas raianas de Miranda do Douro, Vimioso e Mogadouro.
O complexo monástico é uma unidade que inclui uma hospedaria e um mosteiro, pertence à Ordem Cistercience da Estrita Observância, e foi fundado em 2019, pela Comunidade de Vitorchiano. É o primeiro mosteiro trapista em Portugal e nele vivem dez Monjas e três Noviças, em clausura e comunhão fraterna, segundo a Regra de São Bento.
Chegamos embalados no pôr do sol e pelo caminho que se eleva em torno do Lugar de Alacão, entramos pelo arco nobre da hospedaria.
Sob a cúpula celeste, pululante de estrelas pristinas, sentimos as primeiras fragrâncias do Paraíso!
O silêncio, fresco aos nossos ouvidos, é novidade milagrosa e antecipação.
A exalação desta terra xistosa, o sono dos pássaros, o murmulho das folhas das árvores são sussurro da tua presença.
“O Mundo é a nossa Família”
(Madre Giusy)
No ponto mais alto do terreno, junto ao mosteiro, procuramos maneira de anunciar a nossa chegada.
Deslumbrado com a imponência austera e robusta da igreja toda feita de granito, na minha mente viajo…
“Senhor, quando é que nós Te vimos com fome e Te demos de comer, ou com sede e Te demos de beber? Quando é que nós Te vimos como um peregrino e Te hospedámos?” Mt 25, 37-38
Foi Roberto quem nos encontrou primeiro. Habituado aos caminhos da casa, guiou-nos até ao transepto de onde assistimos ao ofício vespertino.
Entramos ao som da primeira Antífona. Sinto a comoção a inundar cada canto do meu ser.
“Salmodiai sabiamente”
“Cantar-Vos-ei na presença dos anjos”
“Que o nosso espírito concorde com a nossa voz”
(Regra de São Bento, Capítulo XIX)
As vésperas celebram-se à tarde, ao declinar do dia «a fim de agradecer tudo quanto nos foi dado e ainda o bem que nós próprios tenhamos feito», leio no missal.
Nessa noite, já acolhido no quarto de hóspedes, sonhei que a janela e o teto se abriam para o firmamento celeste e infinito. O Céu e a Terra, uma e a mesma coisa. Parecia tão real…
“Em todas as grandes escolhas, abdicamos de algo de menor importância por outra de maior significado”
(Irmã Margherita)
Somos três os hóspedes acolhidos por estes dias.
Eu, Nuno, o aguarelista, João, poeta imagético da fotografia, e Roberto, médico, trovador e pai de Irene, uma das Monjas pertencentes à Comunidade Trapista de Palaçoulo.
Conta-nos que passou anos em expressa oposição ao discernimento e escolha vocacional da filha.
Foi preciso um milagre para que esta zanga mitigasse.
Esse antagonismo, agora extinto, abriu espaço para outra coisa.
“A gente trabalha o ano inteiro
Por um momento de sonho
Para fazer a fantasia
De rei ou de pirata ou jardineira
Para tudo acabar na quarta-feira
Tristeza não tem fim
Felicidade sim”
Com um sorriso de criança e paixão no olhar, canta-nos parte do poema de Vinicius de Moraes e explica que se trata de alegoria e síntese de grande parte da sua vida.
Nos seus 70 anos correu intensamente atrás de sonhos, trabalhou, lutou e trajou muitos papéis na sua vida, mesmo quando esta esteve suspensa por um fio… mas morou sempre nele um vazio.
A vocação de Irene mudou a sua.
– O que tu vês? – Pergunta-me olhos nos olhos.
Nos seus percebo que já se habituou à luz do sol, longe das sombras na caverna.
Uma lucidez que não precisa de palavras. Afinal, quando no silêncio e oração tudo se aquieta, é fácil ver-Te em toda a parte.
“Ora et labora”
(Regra de São Bento)
Durante a Missa, a Madre Giusy conduz-nos até ao ponto mais alto da nave da Igreja.
Bela na sua magnífica simplicidade, vista a partir deste lugar revela, nas subtilezas do seu desenho e na austeridade nobre da sua arquitetura, as condições ideais para a oração pessoal e litúrgica.
Os salmos sobem e exaltam a grandeza do teu Amor enquanto nós descemos cheios da tua Graça, gratos pela confiança e privilégio concedidos.
Visitamos a portaria e por aí entramos para o claustro onde das arcadas se pode observar a realidade de separação entre interior e exterior, intrínsecos e indispensáveis à clausura monástica que liberta a Comunidade dos condicionamentos externos.
Segundo a Regra de São Bento, o mosteiro deve conter em si, tudo que é necessário à vida dos monges.
Novamente no exterior, fitamos uma porta orlada pelo dourado da luz matutina. É a porta de acesso à Clausura, onde somos recebidos pela Irmã Irene e pelo afável Argos, serra da estrela que aqui habita, no cume de onde se avista a horta, o pomar, o amendoal e as recém plantadas vinhas.
Toda a Comunidade se envolve na colheita dos frutos desta terra, segundo os ritmos sazonais do seu crescimento.
Mais abaixo estão os locais de trabalho, apropriadamente voltados para o exterior, de forma a não perturbar os espaços destinados à meditação, oração e descanso.
Entramos na “fábrica” seguindo a ordem de processamento dos frutos desta fértil e abençoada terra.
Na divisão contígua à da britadeira de amêndoa, a irmã Sara separa com perícia e diligência o miolo da casca.
É formada em História da Arte e às tarefas e meditações diárias acumula a responsabilidade pela biblioteca.
A esta divisão segue-se a sala de processamento de compotas, mobilizada pela Irmã Deborah. É formada em Ciência e Tecnologias Alimentares, sabedoria que coloca ao serviço da sustentabilidade da presença, na medida das necessidades e potencial da comunidade, numa relação de trabalho-comunhão com a equipa.
O resultado são compotas de maçã-limão, maçã-laranja, ananás, pêssego, marmelo, pera-canela e laranja, confecionados e embalados segundo os mais altos padrões de paladar, qualidade e segurança alimentar. A este ofício e à rotina monástica, acumula a tarefa de ecónoma da comunidade.
Como leigos integrados num ambiente pastoral e educativo, trazemos muitas indagações e a missão de levar um testemunho.
Aqui a riqueza dos saberes é intraduzível e não resistimos a fazer perguntas sobre tudo: amêndoas, conservas, doces conventuais, dons, vocações e discernimento…
É justamente na sala de doces conventuais que, em nome do rigor informativo, pedimos para provar algumas das iguarias.
Enquanto no palato tentamos desvendar a natureza do divino, a Irmã Anunciada, formada em Belas Artes e ocasionalmente ilustradora e cenografista, explica-nos, sem comprometer o segredo das receitas, os preceitos, ingredientes e a função atribuída a cada membro da equipa.
É a autora do receituário e a responsável por esta valência.
Sob a sua supervisão e formação, a Irmã Ana Cecília dedica-se à importante e criteriosa tarefa de embalamento e registo de validade para controle da qualidade. Como Santa Cecília, expressa a sua paixão e devoção através da música, e na sua bagagem de noviça trouxe a licenciatura em Farmácia e a experiência profissional e técnica na área.
A Irmã Matilde, igualmente noviça, opera também na produção e embalamento.
Formada em Ciências da Educação e com experiência como docente no ensino regular, exercida já no período de discernimento, acolheu recentemente a vocação e prepara-se para a cerimónia de Tomada de Hábito.
Todas as monjas de Palaçoulo chegaram ao compromisso vocacional após completarem os seus estudos académicos. Para além das áreas mencionadas, os estudos em Contabilidade, em Filologia Romana e em Filosofia são lugares férteis de conhecimento revisitados e prolificados a favor da Comunidade, do Mundo e da Plenitude da Humanidade.
No silêncio, na contemplação, na oração, na caridade do trabalho manual, a mente apazigua.
Aqui cada hóspede é recebido como se fosse Jesus Cristo.
“Pois Ele dirá um dia, fui hóspede e recebeste-Me”
(Regra de São Bento, Capítulo LIII)
A Irmã Margherita é a responsável pela hospedaria.
À saída da clausura, na sua tranquila e terna expetativa, acolhe-nos, inebriados, nesta paz oferecida.
Estamos no caminho de regresso ao conjunto edificado construído para albergar, com comodidade e em 22 quartos, um máximo de 40 pessoas.
A hospitalidade faz parte do carisma da comunidade e a hospedaria, para além dos aposentos para os hóspedes, está ainda equipada com sala de reuniões, sala de leitura, refeitório e capela.
No exercício desta incumbência, a Irmã Margherita cuida dos hóspedes e da articulação com o exterior: fornecedores, saídas para compras e outras tarefas.
É um mandato temporário, – embalado pelo apelo da clausura e da regra, que nos explicará mais tarde –, serem instrumentos preciosos para uma presença mais forte e enraizada na realidade, ao contrário das representações mais comuns e aparentemente intuitivas.
É no átrio de entrada, junto à lareira, que nos sentamos brevemente.
Para integrar a intensidade da experiência e para melhor compreender tudo o que vimos e sentimos, pedimos que nos ajude a percorrer e interpretar as memórias desta estadia.
Explicamos a nossa curiosidade e comoção diante da beleza das liturgias, da vivência comunitária na regra beneditina e colocamos algumas questões sobre a sua vida antes da vocação e depois da vocação.
Os jovens têm sede do Senhor e, para Deus, o tempo é sempre um convite…
Escutamos.
“A regra é uma ajuda para a nossa vida diária e não uma realidade em que somos constrangidas a entrar. O silêncio monástico não é ausência, mas sim presença. Presença de Deus, frente a frente com a realidade e com a existência, sem distrações.”
“A beleza no canto dos salmos, dedicada ao Senhor que nos ama e que por nós é amado, encontra paralelo nas mais belas flores colhidas para a noiva, ou na escolha do mais bonito e singelo anel nupcial. Oferecemos sempre o mais belo a quem mais amamos.”
A Irmã Margherita explica-nos com simplicidade a experiência de comunhão familiar vivida entre as monjas, da amizade, sinceridade e fraternidade que as vincula, nos bons e maus momentos, e da reflexão, resolução e reconciliação diárias que são uma característica desafiante e singular na regra e no carisma.
Há muita gente a viver na solidão, nas suas urbes, sociedade, empregos, escolas, famílias.
O mosteiro e a sua comunidade são presença e lembrança de que não estamos sós.
“Um farol para o mundo”, pensamos nós enquanto pousamos o bloco de notas e o equipamento fotográfico.
No momento em decidimos rumar para a loja, gratos, na despedida, fazemos uma promessa. Levar aos nossos jovens as coordenadas geográficas e espirituais deste lugar e regressar na sua companhia.
Com a alma a transbordar
“Desci ao jardim das nogueiras,
para admirar o vigor do vale,
para ver se as vides rebentavam,
se os cachos já se abriam”
Ct 6, 11
A loja do mosteiro é o repositório de alguns dos melhores frutos desta oração que é ofício e deste trabalho que é oração.
A Irmã Lúcia, responsável pela produção dos terços e pela venda dos produtos, explica-nos que todo o artesanato produzido, com recurso privilegiado à madeira, em particular, de nogueira e oliveira. A qualidade artística e do fabrico é reflexo da generosidade e beleza da espiritualidade beneditina.
Terços, dezenas, porta-chaves, a que se juntam livros para crianças, publicações dedicadas aos Santos de Cister de ontem e de hoje, e um conjunto mesmerizante de iguarias.
Creme de amêndoas, mel, compotas, “amaretti”, trancinhas, pãozinho do peregrino, “torrone” tenro, amêndoas vestidas, amêndoas salgadas, amêndoas pimentinhas, rabiscos e torroncinhos.
Enquanto preparamos a cesta de compras, fazemos uma última “entrevista”.
Antes de conhecer a Ordem Trapista, a Irmã Lúcia foi aluna na Escola Salesiana de Barese onde tirou o curso de Contabilidade. Trabalhou 10 anos como contabilista em diversas empresas e em diversos ramos. Apreciava o trabalho que fazia, de onde retirava um confortável proveito financeiro. Tinha uma vida cheia, cantava num coro gospel, participava num movimento eclesial e namorava.
Mas sentia um vazio, uma ausência, uma incapacidade para sentir e conhecer esse Cristo Vivo a quem rezava diariamente.
Uma monja trapista, com quem partilhava estas dúvidas e expetativas, sugeriu que rezasse ao Senhor para que Este se revelasse.
E a revelação surgiu num momento inesperado, de convalescência, nas visitas e cuidados diários das monjas e de outros membros do movimento eclesial.
“Pois onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, Eu estou no meios deles.” Mt 18, 20
A Igreja é esse corpo vivo de Cristo.
“É para Ele que a minha existência cintila. No discernimento vocacional, o desejo não é nosso, é dom… é-nos dado.”
Temos o cabaz cheio.
Trazemos doces, livros, terços e a alma a transbordar.
Centenas de fotos em disco, um caderno com dezenas de folhas anotadas.
Dariam volumes com centenas de páginas a descrever um lugar único de oração, paz, silêncio e de encontro com Deus e com uma dimensão comunitária da Igreja.
Agradecemos o atendimento e generosidade da partilha e partimos para uma caminhada em torno dos 28 hectares onde se implanta o conjunto de instalações e recursos do Mosteiro.
Após uma visita a Palaçoulo, recolhemos ao refeitório para a última refeição do dia.
Nos sabores frescos, simples e caseiros de uma ementa confecionada pelas monjas, a partir de ingredientes colhidos na horta, ovos, frutas locais e da época, peixe, pão, vinho e massas frescas, trocamos reflexões e arrumamos, consolados, a riqueza experiencial destes dois dias.
Na manhã seguinte, ao nascer do sol, iniciamos a viagem de regresso.
Ao passar por Fátima recordamos que foi por ocasião do Centenário das Aparições que esta presença Trapista em Portugal foi sonhada pela primeira vez.
“E o sonho de Deus realizou-se.”
A hora é de “Noa”, estamos de regresso a Casa.
O que levámos no coração recebemos em cêntuplo!
Outras informações
O edifício do Mosteiro Santa Maria Mãe da Igreja foi inaugurado em outubro de 2024. A construção teve início em 2019 e custou cerca de seis milhões de euros.
D. José Cordeiro, Arcebispo Primaz de Braga, é um dos mentores deste projeto emblemático na longa e fecunda história da Diocese de Bragança-Miranda.
O Mosteiro Trapista de Palaçoulo possui um site na internet onde é possível saber mais sobre a Comunidade, o dia monástico, o projeto do mosteiro, a hospitalidade, as vocações, notícias e os produtos que também estão disponíveis para venda on-line.
www.trapistaspalacoulo.pt
Fotografias: João Ramalho
Publicado no Boletim Salesiano n.º 607 de janeiro/fevereiro de 2025
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