Corações em Construção: A Comunidade que Cuida da Adolescência em Dificuldade

Ao longo das últimas semanas, as palavras levaram-nos ao papel da família como porto seguro, da escola como farol e dos educadores como presenças transformadoras. Em cada um desses lugares, mergulhámos na travessia da adolescência e explorámos as bússolas que os jovens precisam para crescer com confiança.

Porém, nem todos atravessam a adolescência da mesma forma.

Para alguns, este tempo de crescimento é também um tempo de grande sofrimento. São jovens que carregam feridas invisíveis, histórias complexas, dores que não sabem nomear. Alguns apagam-se devagar. Deixam de rir. Isolam-se. Tornam-se mais agressivos. Perdem o interesse por tudo o que antes lhes fazia sentido. Outros disfarçam, exageram, provocam ou fazem de conta que está tudo bem.

São estes os rostos da adolescência em dificuldade – e foram estes os rostos que a série Adolescência, da Netflix trouxe para o centro e que, com eles, lançou uma pergunta que continua a ecoar: “Quem cuida destes adolescentes quando tudo parece falhar?”.

É a estes que dedico este último artigo. Porque há corações em construção que não precisam apenas de ser acompanhados – precisam de ser resgatados. E esse resgate começa, sempre, com um gesto: cuidar.

Mas afinal, o que significa cuidar? Como tão profundamente nos inspirou o Papa Francisco: “Cuidar significa desenvolver uma atitude interior de empatia, um olhar atento que nos leva para fora de nós mesmos, uma presença gentil que vence a indiferença e nos impele a interessar-nos pelos outros.”.

É por isso que um olhar atento ao que muda é um dos gestos mais importantes – e mais amorosos – que podemos oferecer. O sofrimento na adolescência nem sempre grita – esconde-se em silêncios, mascara-se em comportamentos desafiantes, camufla-se em notas que continuam boas ou em sorrisos que já não têm brilho. Há jovens que parecem funcionar por fora, mas estão em colapso por dentro. Mudanças bruscas de humor, alterações no sono ou na alimentação, isolamento, queda no rendimento escolar, discursos de desvalorização pessoal, comportamentos de risco ou mesmo pensamentos ligados à morte são sinais de alerta que pedem o essencial: presença, escuta e ação.

Como psicóloga, vejo estes sinais todos os dias: os olhares baços, as respostas atravessadas e os silêncios que, se escutados com atenção, dizem tudo. Vejo também as dificuldades de tantas famílias, professores e técnicos: o medo de exagerar, o receio de não saber como ajudar, a esperança de que “passe com o tempo”. Mas o sofrimento não passa sozinho. E o silêncio, quando ignorado, cava feridas mais fundas.

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É aqui que entra o poder da comunidade. Porque nenhuma família, nenhuma escola, nenhum educador está sozinho nesta missão. A adolescência em sofrimento pede mais: pede rede, ligação, ação coordenada. Uma rede que seja capaz de olhar para além do comportamento e em que todos – mesmo a partir de espaços diferentes – compreendem que estão a cuidar do mesmo coração.

Essa rede é feita de muitos rostos e lugares: quando a escola comunica com os serviços de saúde; quando as instituições sociais se ligam aos clubes desportivos; quando os centros juvenis se articulam com os agrupamentos escolares; quando as paróquias conhecem o nome dos jovens do bairro; quando o psicólogo fala com o treinador. Cada gesto de ligação é um fio que se entrelaça nos outros. Cada adulto, um elo de confiança.

Na tradição salesiana, esta visão não é nova – é essencial. Dom Bosco sabia que o cuidado dos jovens mais vulneráveis exigia mais do que um esforço individual. Criou oratórios que eram casas, escolas que eram pátios, comunidades que eram família. Construiu, com outros, redes vivas de cuidado – onde cada jovem, por mais desafiante que fosse, encontrava alguém que lhe dizia: “Acreditamos em ti.”.

E hoje? Hoje continua a ser assim.

Cuidar em comunidade é dar corpo à esperança. É transformar espaços comuns em territórios de proteção. É acreditar que o acolhimento pode acontecer em muitos lugares – e de muitas formas:

  • Pode ser uma escola que, ao notar a ausência repetida de um aluno, decide ir mais fundo: chama, escuta, procura compreender.
  • Pode ser um técnico de intervenção comunitária que, conhecendo a realidade da família, consegue aproximar os apoios certos no momento certo.
  • Pode ser um clube desportivo onde um treinador, atento, percebe que o comportamento rebelde de um jovem é afinal um pedido de pertença.
  • Pode ser uma paróquia, uma associação juvenil, um grupo de teatro, um campo de férias… onde um adolescente encontra alguém que acredita nele, que lhe dá espaço para errar, que o chama pelo nome.
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São muitos os caminhos possíveis, mas todos têm algo em comum: a força da presença.

Esta força é decisiva, porque os adolescentes em sofrimento, para além do apoio técnico e especializado, também precisam muito de relações consistentes, de ambientes seguros, de adultos atentos. Precisam de comunidade.

E esta comunidade precisa de se organizar, de se conhecer por dentro, de se articular, porque ninguém cuida bem, se cuida sozinho e, mais do que isso, nenhum jovem se resgata sem uma rede firme onde se possa segurar – uma rede que coloca o coração em ação com intenção, com presença, com amor concreto.

Foi exatamente isso que Dom Bosco fez. Rodeado de jovens em sofrimento, percebeu que não bastava corrigir ou orientar. Era preciso amar. Amar com olhos atentos, com presença constante, com palavras que encorajam mais do que repreendem. Como ele dizia: “Mais se conseguirá com um olhar de caridade, com uma palavra de encorajamento, do que com muitas repreensões.”. É esse o convite que nos fica: ver com bondade, falar com esperança, estar com compromisso.

Este não é apenas o final de uma série de artigos com palavras que cuidam – é lembrança de que o cuidado só ganha vida nas nossas ações e é, sobretudo, a renovação de um compromisso que é de todos nós. Cuidar de um adolescente em dificuldade não é tarefa de um só, nem missão que possa esperar. É agora. É connosco.

Que sejamos todos – famílias, escolas, educadores, técnicos, instituições, comunidades de fé – parte de uma rede viva, humana, atenta e comprometida com o cuidado. Que tenhamos a coragem de ver o que dói, de chamar pelo nome o que parecia invisível, de permanecer junto quando tudo em volta se fragmenta. Porque, tal como nenhuma semente floresce sem solo fértil e mãos que cuidam, também o coração de um adolescente precisa de um lugar onde se sinta nutrido, protegido, cuidado – onde possa crescer com amor.

About the author

Mãe de uma menina cheia de vida. Companheira de quem cuida e constrói comunidade com o coração. Psicóloga especialista em Psicologia Clínica e em Psicologia Comunitária.

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