Padre João de Deus Pires: “Baptizei umas 80 mil pessoas”

Numa entrevista ao Boletim Salesiano em 2010, o Padre João de Deus Pires afirmava que os sonhos que acalentava eram os mesmos que sempre teve: “Viver com o povo Timorense”.

O Padre João de Deus Pires chegou à ilha de Timor a 4 de janeiro de 1958. Nestes mais de 50 anos de missão baptizou cerca de 80 mil pessoas, fez milhares de casamentos e espalhou a palavra de Deus. Foi preso quer pela Fretilin quer pelos indonésios. Esteve do lado do povo e colaborou, naturalmente, com os guerrilheiros timorenses. Xanana Gusmão deu-lhe o nome de código “Liras”, que significa asas para voar.

Agradecia que se apresentasse aos leitores do BS: de onde é natural, que idade tem, que estudos fez, como conheceu os salesianos e há quantos anos está em Timor.
Agradeço esta entrevista e espero que seja profícua para a Família Salesiana e mais propriamente para a juventude. Costumo dizer que sou um instrumento nas mãos de Dom Bosco para trabalhar na Igreja, principalmente no campo da juventude. Deus criou-me, gosta de mim como sou e não como eu gostaria de ser. Nasci em Morais, Macedo de Cavaleiros, a 15 de Abril de 1928, já lá vão 82 anos. Numa aldeia muito pobre e humilde, sem estradas e sem as condições que tem agora. Ali fiz a instrução primária. Depois fui para o seminário e descobri Dom Bosco, aquele que me descobriu primeiro. Em Morais nunca tinha ouvido falar de Dom Bosco. Minha mãe gostava de ter um filho sacerdote. Éramos seis irmãos. Dom Bosco ouviu as suas orações e de maneira providencial entrei no seminário de Mogofores. Ali permaneci dois anos transitando depois para Poiares da Régua, onde conheci o Pe. Manuel Preto e o irmão leigo José Ribeiro. Andava no 4.º ano e ouvi dizer que eles iam, como missionários, para Timor. Entretanto, ainda em Mogofores, ingressei no noviciado, tive o Pe. Afonso Nacher como “Mestre” de noviços, que mais tarde iria encontrar também como missionário em Timor. Fiz os estudos de filosofia no Estoril e o estágio em Lisboa, nas Oficinas de S. José. Depois cursei teologia durante quatro anos em Barcelona. Assim foram os meus estudos, sempre com a ajuda de Deus. Encontro-me em Timor há 52 anos. Cheguei a 4 de Janeiro de 1958, juntamente com o Pe. José Correia Rola. Logo a seguir chegou o Pe. Joaquim Marvão. Infelizmente, ambos faleceram pouco tempo depois.

Comecemos pelo princípio: enquanto seminarista, pensava em ser missionário ou tudo aconteceu por acaso? 
Posso dizer que sou uma vocação “forçada”. Nunca pensei em ser missionário. Mas o superior convidou-me e eu aceitei, com espírito de obediência religiosa. Eram tempos duros. O Pe. Armando Monteiro, de saudosa memória, era o provincial na altura e não houve discussão. Tinha eu então um ano de padre.

Há 50 anos, como era Timor no plano social e económico? Como viviam as pessoas?
Viviam pior mas mais felizes. Viviam o dia-a-dia com a sua cultura ances-tral e sem pretensões. Contentavam-se com o que tinham. Celebravam as suas festas e mantinham os seus hábitos sem problemas. Com o passar do tempo, chegaram lá os portugueses e outros, de cultura ocidental. Tentaram modificar os seus hábitos e costumes, mas não lhes deram meios para o conseguir. Abriram-lhes os olhos, ensinaram como se deviam vestir, que existia televisão e outros bens de consumo, mas não lhes deram condições para os adquirir. Apesar disso, tudo se modificou.

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E no plano religioso? Ainda encontrou cultos a divindades pagãs?
Encontrei e encontro. Fazem parte da sua cultura. São monoteístas, acreditam num só Deus e na eternidade da alma. Para eles não existe o abstracto, só o concreto. “Coisificam” Deus. Chamam-lhe “Lulik”, que quer dizer sagrado. Não existem muitos deuses, existem sim muitos “Lulik” sagrados.

Os salesianos nessa altura já estavam presentes em muitos locais da ilha?
Ainda não. Estavam apenas em Díli e Fuiloro. Em Díli tínhamos uma escola com o tecto de capim. Eram condições muito precárias e tínhamos mais de 600 crianças. Trabalhei ali quatro anos como professor da 4.ª classe e a ajudar na paróquia. Tínhamos um núcleo de antigos alunos, um grupo ADMA muito desenvolvido e bastantes Salesianos Cooperadores. Pela nossa acção em Díli, mais tarde, em 1971/72, o Bispo Dom Jaime combinou com o provincial, Pe. Armando Monteiro, e entregou aos Salesianos uma missão em Baucau, contra a vontade do clero secular. O Pe. Armando Monteiro mandou-me para lá, onde ainda continuo. 

Fale-nos do seu trabalho a nível social/caritativo durante o tempo da ocupação.
Naquela zona de Baucau existiam apenas duas igrejas. Como os cristãos aumentavam e não tínhamos locais para os acolher, começámos a construir igrejas. Hoje são 16 igrejas, com capacidade para acolher uma média de 200 pessoas cada uma. A maior parte não tem grandes condições. Não têm bancos. Assim levam mais gente! Nesta altura ainda se enchem, mas antes tínhamos quatro ou cinco missas ao domingo. Era e é ainda um local de encontro, para desabafar e conversar, ouvir novidades, sem ser perturbados pelos indonésios. Brincávamos, conversávamos. Criámos também três orfanatos, infelizmente com poucas condições na altura. Pouco mais eram do que muros com umas folhas a fazer de telhado.

E como alimentavam toda essa gente?
Como alimentávamos toda aquela gente? Temos que agradecer a Dom Bosco. A certa altura o administrador de Baucau era católico e, então, os americanos enviaram para lá alguns barcos carregados de arroz e de farinha de milho. Em Baucau trabalhou o Pe. Manuel Magalhães. Estivemos juntos 11 anos. Transformámos as igrejas e as escolas em armazéns. O administrador confiou-nos a guarda e gestão desses mantimentos. Durante dois ou três anos, assim subsistimos. Por vezes, os indonésios pensavam que eu levava mantimentos para os guerrilheiros que viviam no mato e faziam-me a vida negra furando os pneus dos camiões, tratando-me mal e insultando-me.

O seu trabalho apostólico tem dado muitos frutos?
Só Deus sabe. Mas os números falam por si: em 50 anos baptizei umas oitenta mil pessoas. Fiz milhares de casamentos e espalhei a Palavra de Deus por aquelas terras lindas de Timor.

Falemos de outras “guerras”: foi alguma vez agredido ou maltratado no tempo da ocupação indonésia? A sua vida esteve alguma vez em perigo?
Senti por várias vezes que a minha vida corria perigo. Por isso deixava o carro em casa e ia a pé de escola para escola com um grupo de jovens ou de crianças e assim sabia que não me fariam mal. Mas, se fosse de carro, estava sujeito a que me fizessem mal. Levava um pau na mão e algum arroz para comermos durante uns dias e lá íamos visitando as missões. O perigo vinha dos indonésios, por saberem que eu estava do lado dos timorenses. 
Quando andava de batina, era como um “Deus”, mas se andasse “à civil” era mais “um” português. Bateram-me e fizeram-me prisioneiro. Primeiro, fui preso pela FRETILN, andei muito tempo a pé. Passei o Natal de 1975 prisioneiro. Depois fui preso pelos indonésios durante alguns dias.
Nunca quis usar a batina como “arma” para me defender e assim era mais “um”. Um dia, em que me bateram, veio um comandante pedir desculpa e disse: «Pastor, use aquela coisa branca (na língua deles putin), para não ter problemas, para o distinguirmos». Disse-lhe que queria ser tratado como timorense e como homem… a batina era para utilizar na igreja.

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Sempre se disse à boca pequena que, durante muitos anos, colaborou com a guerrilha. É verdade? E de que forma?
A colaboração partia de uma tríade: guerrilheiros-povo-Igreja. A Igreja era o porta-voz, a guerrilha era o braço armado e o povo era o corpo que sustinha os guerrilheiros. Quando começava a época das chuvas, os guerrilheiros, nas montanhas, precisavam de capas de lona, botas, comida, vestuário, canetas, papel para escrever, dinheiro para remédios. Estes mantimentos eram enviados através de estafetas que não sabiam realmente que eu ajudava os guerrilheiros. Xanana deu-me o nome de código Liras, que significa asas para voar. Quando ele se encontrava em dificuldade com alguma notícia ou necessidade urgente, pedia aos estafetas que entregassem as cartas ao Liras e os estafetas perguntavam-me se conhecia essa pessoa. Eu dizia que sim, que a conhecia e que lhe entregava as cartas. E assim os ajudava.

Desde quando conheceu Xanana Gusmão?

Não conheci Xanana directamente. Conheci mais os guerrilheiros da minha zona. Quando fui para Baucau, os seus pais eram professores na missão de Baucau. Excelentes pessoas, ambos timorenses, a mãe falava muito bem português. Xanana, na altura em que fui para Baucau, andava no liceu de Díli. Só durante a guerra é que o ajudei secretamente. Conheci-o e encontrei-me com ele depois da independência, numa reunião em Baucau. Ele falou da guerrilha e durante a conversa olhou uma vez ou duas para mim e à terceira vez perguntou ao Sr. Bispo quem era eu. O Sr. Bispo respondeu-lhe que era o Pe. João de Deus. Xanana parou a reunião, levantou-se, ajoelhou-se a meu lado e disse comovido: «O sr. padre foi o meu braço direito».

Foi galardoado pelo presidente Jorge Sampaio. Que benemerência lhe foi outorgada?
Comendador. Foi em 20 de Maio de [2004]. 

Com 80 anos de idade vai regressar a Timor depois de um breve período de descanso. Que sonhos ainda acalenta?

Os mesmos que sempre tive até agora: viver com aquele povo e para ele.

Publicado no Boletim Salesiano n.º 520 de Maio/Junho de 2010

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