«Seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu» (Mt 6,10)
BONS CRISTÃOS E HONESTOS CIDADÃOS
PREMISSA
Quando juntamente com outros irmãos pensei no Lema deste ano, percebi claramente como o tema era importante e fascinante. Simples no título, mas amplo e complexo no seu desenvolvimento. Após o trabalho destas semanas, percebi ainda mais claramente. Parece-me um tema fascinante, útil e complexo.
Creio sinceramente que, na nossa Família Salesiana, em todos os nossos Grupos, nas diversas nações em que trabalhamos, e com as obras mais variadas, precisamos de dirigir o olhar para os aspetos que têm a ver com a formação do cristão e do cidadão.
- Devemos tornar cada vez mais explícita a mensagem de que a nossa missão é Evangelizadora e Catequizadora. Sem isso, não somos Família Salesiana. Podemos ser “prestadores de serviços sociais”, mas não apóstolos de crianças, de adolescentes e de jovens.
- Ao mesmo tempo, torna-se cada vez mais evidente que, na nossa missão de educadores, não podemos “viver no limbo”, como se nada tivesse a ver com a vida, a justiça, a igualdade de oportunidades, a defesa dos mais frágeis, a promoção da vida cívica e honesta. Esta dimensão é hoje mais urgente do que nunca, uma vez que a sociedade em que vivemos não acredita muito nestes valores. Quando educamos, de que lado estamos? Precisamente em força desta pergunta, a reflexão do Lema deste ano é muito atual e necessária.
- Acrescenta-se a tudo isto um novo obstáculo. O binómio educativo de Dom Bosco, que o orientava na Itália do século XIX, será ainda válido no atual «mundo salesiano» em que a Família de Dom Bosco pode viver em países com diversas religiões ou com uma maioria não-cristã ou em sociedades pós-cristãs ou até em nações oficialmente leigas e antirreligiosas?
Quanto a este último aspeto, ou seja, um Lema em que se fala de como ser Bons Cristãos em sociedades não-cristãs, chegaram-me perguntas de algumas dessas regiões; apresento-as porque contêm sem dúvida uma grande sensibilidade pastoral. Eis algumas delas. - Nas Províncias de grande maioria não-cristã (outras religiões, agnósticos ou indiferentes), o Lema será bem aceite na medida em que conseguir oferecer algum espaço de reflexão e alguma ideia para a ação educativa em ambientes «não-cristãos» ou «pós-cristãos». Como se poderia apresentar o binómio educativo de Dom Bosco para que também os nossos leigos e jovens não-cristãos possam aceitá-lo, compreendê-lo, segui-lo e pô-lo em prática?
- Nos tempos de Dom Bosco, no contexto de uma sociedade de maioria cristã, o bem social era sinal de uma autêntica religiosidade. Entretanto, hoje, nos 134 países do mundo em que o carisma se difundiu, sentimos sobretudo a necessidade de manter o equilíbrio numa atitude de abertura e inclusão no processo educativo «para e com» os jovens e leigos não-cristãos, a partir do primeiro anúncio do Evangelho de Jesus Cristo mediante o Sistema Preventivo que cria as relações e o clima de família em que se educa e a fé é transmitida por osmose.
- É preciso ter em conta os ambientes pluriculturais e plurirreligiosos das 40 Províncias salesianas que vivem nas Igrejas minoritárias entre as grandes religiões do mundo, sobretudo na Ásia e África. Não basta repetir o que Dom Bosco fez no século XIX. Podemos aprender das experiências dos Salesianos que vivenciam hoje o Sistema Preventivo em países de maioria não-cristã. Eles têm, certamente, muitas experiências ricas de vida e souberam interpretar o pensamento de Dom Bosco em contextos plurirreligiosos e pluriculturais que o nosso Pai nem sequer teria podido imaginar.
Bons cristãos e honestos cidadãos em ambientes de maioria não-cristã ou pós-cristã. Eis algumas perguntas precisas:
- Como pôr em prática o binómio de Dom Bosco entre os jovens e leigos colaboradores não-cristãos?
- Como manter o equilíbrio entre a abertura aos não-cristãos e o primeiro anúncio do Evangelho?
- Como traduzir o conceito de “bom cristão” para a maioria dos colaboradores leigos não-cristãos?
- Como pôr em prática o pilar da “Religião” nos contextos plurirreligiosos em que vivemos?
- Como educar os jovens e leigos nos três pilares da Espiritualidade do Sistema Preventivo de Dom Bosco: Razão – Religião – Bondade (Amorevolezza)?
- Como traduzir na vida quotidiana o “bons cristãos” de Dom Bosco na missão compartilhada com tantos não-cristãos?
- O Reitor-Mor acredita que o Sistema Preventivo de Dom Bosco pode ser plenamente vivido e posto em prática também pelos leigos colaboradores de outras religiões?
- Como incluir os não-cristãos na Comunidade Educativo-Pastoral (CEP)?
- O que dizem os próprios não-cristãos envolvidos na missão educativa salesiana?
- Quais são as expressões mais atraentes da prática do Sistema Preventivo de Dom Bosco?
Acredito que no desenvolvimento do Lema será possível encontrar orientações que, de um ou de outro modo, respondam a estes quesitos, obviamente mais do que legítimos, que fizeram chegar até mim.
BONS CRISTÃOS E HONESTOS
CIDADÃOS em Dom Bosco 1
Haverá quem se pergunte se este binómio educativo foi utilizado e proposto pelo próprio Dom Bosco. Pois bem, este é um dos aspetos que o padre Braido aprofunda com rigor académico. Ele, de facto, fez-nos entender que Dom Bosco sempre seguiu este caminho ou proposta educativa formulada com estas mesmas palavras ou parafraseando-a, alternando os seus matizes conforme os seus interlocutores. Contudo, o tema da relação entre educação dos jovens e o bem da sociedade, com o tema da salvação eterna, pode ser considerado uma constante. O binómio foi utilizado, na verdade, com estas diversas formulações ao longo dos anos:
- «Fazer deles honestos cidadãos e bons cristãos»
- «Ser bons cristãos e aprendizes honestos» (1857)
- «Possam ser bons cidadãos e bons cristãos» (1862)
- «Fazer de todos bons cristãos e honestos cidadãos» (1872)
- «Educar a juventude para a honra do cristão e o dever do bom cidadão» (1873)
- «Tornavam-se bons cristãos e honestos cidadãos» (1875)
- «Fazer o pouco de bem que posso aos rapazes abandonados, empenhando-me com todas as forças para serem bons cristãos face à religião, honestos cidadãos no meio à sociedade civil» (1876)
- «Preparar bons cristãos para a Igreja, honestos cidadãos para a sociedade civil» (1877)
Em muitos dos seus escritos, especialmente nas suas cartas, Dom Bosco deixou bem definido o binómio educativo-pastoral com estas expressões (sempre segundo Braido como fonte científico-histórica):
- A finalidade que nos propomos é fazer deles bons cidadãos e bons cristãos;
- Fazer deles bons cristãos e honestos cidadãos;
- São (…) cidadãos úteis e bons cristãos;
- Tornam-se bons cristãos, honestos cidadãos;
- Entrando um jovem neste Oratório, deve persuadir-se de que este é um lugar de religião, em que se deseja fazer bons cristãos e honestos cidadãos;
- Devolvê-los à sociedade civil como bons cristãos e bons cidadãos;
- Educados nas virtudes cristãs e cívicas (…); fazer deles bons cristãos e honestos cidadãos;
- Trata-se de fazer deles honestos Cidadãos e bons Cristãos;
- Viver sempre como bons cristãos e sábios cidadãos;
- Esperança de que eles se tornem bons cristãos, honestos e úteis cidadãos;
- Agora são bons cristãos e honestos cidadãos;
- Sont maintenant de bons chrétiens et d”honnêtes citoyens;
- Alegro-me muito ao saber que vós (…) viveis como bons cristãos, como cidadãos honrados;
- Onde quer que vos encontreis, apresentai-vos sempre como bons cristãos e homens honestos;
- Finalidade dos nossos colégios é formar bons cristãos e cidadãos honestos;
- Para serem depois devolvidos à Sociedade civil como bons cristãos, honestos cidadãos;
- Saem [do Oratório] como bons cristãos e cidadãos competentes;
- Devolvê-los à Sociedade como bons cristãos e honestos cidadãos;
- Educá-los para fazer deles bons cidadãos e verdadeiros cristãos;
- Bom cristão e honesto cidadão;
- Aprendendo a viver como bons cristãos e sábios cidadãos;
- Instruídos para viver como bons cristãos e sábios cidadãos;
- Tornam-se bons cristãos, sábios cidadãos;
- Tornando-os bons cristãos e úteis cidadãos;
- Continuai, pois, a ser bons cristãos e sábios cidadãos;
- Dar à sociedade civil, membros úteis; à Igreja, católicos virtuosos; ao Céu, habitantes afortunados;
- Fazer deles bons cidadãos e bons cristãos;
- Restituí-los (…) à sociedade civil como bons cristãos, honestos cidadãos;
- Farão ver ao mundo como é possível (…) ser Cristãos e ao mesmo tempo honestos e laboriosos Cidadãos;
- Instruí-los, educá-los, fazer deles bons cristãos e honestos cidadãos;
- Poderíamos dar mais às famílias, à Igreja, à sociedade muitos bons filhos, muitos pais cristãos e honestos, muitos cidadãos melhores;
- Tornar-se bons cristãos e honestos cidadãos;
- Devolvê-los à família, à sociedade, à Igreja como bons filhos, cidadãos sábios, cristãos exemplares.
Podemos notar que, como se se tratasse de uma partitura musical, a melodia é sempre a mesma, embora com diversos cambiantes. O padre Braido apresenta-o de modo incontestável num estudo que nos permitiu compreender que Dom Bosco não é um teórico. É um homem de ação. Entretanto, é um homem de ação que reflete sobre o sentido das suas iniciativas pastorais. Portanto, embora não seja surpreendente que o vocabulário utilizado e os conceitos expressos sejam simples e repetitivos, é claro que o seu trabalho se move em linhas de ação muito precisas e uma clara consciência «teórica», tanto em termos de conhecimento das situações e dos problemas como em termos de soluções operativas postas em prática.
Os dois aspetos ressaltam com particular evidência numa das suas expressões mais queridas e repetidas: «bom cristão e honesto cidadão».
1. BONS CRISTÃOS
1.1 BONS CRISTÃOS vivendo na Fé no Senhor e guiados pelo Espírito…
Voltando às nossas origens quando, no final de dezembro, Dom Bosco oferecia o Lema para o novo ano, com mensagens personalizadas para cada jovem e para os primeiros Salesianos, percebe-se que “viver na fé” era o que o primeiro Oratório tinha de mais precioso e ao mesmo tempo mais natural a oferecer a quem ali vivia, tanto jovens como seus educadores. Era o espelho de uma realidade de vida em que os primeiros Salesianos, as mães do Oratório, os leigos que ajudavam e os jovens, formavam uma verdadeira família na mesma casa.
É impressionante o número de Santos e Beatos que habitaram aqueles ambientes pobres durante a vida de Dom Bosco. Foi uma escola de santidade recíproca, um crescer juntos na fé. Se é verdade, por exemplo, que Dom Bosco ajudou Domingos Sávio a crescer no amor de Deus, não é menor a influência de Sávio e dos seus colegas sobre Dom Bosco, sobre a sua “formação permanente” como homem de Deus. «É dando a fé que ela se fortalece!». 2 Do dom recíproco da fé vivida intensamente, nasceu a escola de santidade que continua a alimentar o caminho espiritual da Família Salesiana no mundo inteiro.
A harmonia entre fé e vida está no centro do carisma de Dom Bosco, em cujo rosto e em cuja história se contempla uma «esplêndida harmonia de natureza e graça. Profundamente homem, rico das virtudes do seu povo, era aberto às realidades terrenas; profundamente homem de Deus, cheio dos dons do Espírito Santo, vivia como se visse o invisível». 3
Hoje, “viver na fé” é o dom mais precioso que podemos partilhar entre nós, qualquer que seja o nosso estado de vida, idade, vocação e também religião. Na eclesiologia de comunhão que alimenta e transforma o caminho da Igreja, também intensamente posta em prática e encorajada pelo Papa Francisco, a identidade de cada grupo e pessoa realiza-se e revela-se sendo dom para os outros, e também sabendo acolher o dom de quem é chamado a ser discípulo do Senhor em todos os estados de vida e vocação.
Para aqueles que, de entre nós, somos consagrados na Família Salesiana não será, porventura, “viver na fé” o centro e o coração do que somos chamados a ser e oferecer, encarnado na especificidade de cada vocação particular e de cada pessoa?
Se nós, consagrados, não formos ícone da «harmonia de natureza e graça», do encontro fecundo entre o chamamento e o amor de Deus e a generosa resposta quotidiana da sua liberdade, com que outro «tesouro no campo» se poderá contar para que a vida tenha um significado, ou melhor, uma plenitude de significado, para poder ser sal e luz, capaz de dar sabor e iluminar a existência daqueles que vivem connosco?
O Sínodo sobre os Jovens demonstrou com toda a clareza que aquilo que as novas gerações esperam dos que dedicaram a vida inteiramente ao Senhor é encontrar «testemunhas luminosas e coerentes». 4
O mesmo, porém, devemos dizer em relação aos leigos, aos pais, aos jovens: se a fé é dom, também é dom a vida de fé. Não é o resultado de grandes competências pessoais e força férrea da vontade. Qualquer contributo nosso, que também passa a fazer parte do diálogo entre graça e liberdade, nunca se coloca fora do amor preveniente de Deus, da presença tão discreta quanto eficaz do Espírito em cada um, na comunidade, na Família Salesiana, na Igreja, no mundo, na história, no universo inteiro. O Espírito é a força criadora e a energia que leva à plenitude, que do grão de mostarda do Reino faz crescer uma grande árvore.
1.2. BONS CRISTÃOS vivendo à Escuta do Deus que nos fala
«Não há dom maior que possas oferecer a outra pessoa do que uma perfeita atenção». Era esta a conclusão a que chegou um sábio missionário após muitos anos de serviço na convulsa periferia de uma grande cidade.
Estamos a procurar redescobrir de muitas maneiras a capacidade de escuta, arte fundamental também para o acompanhamento pessoal. Aprender a escutar foi um forte estímulo oferecido pelo Sínodo sobre os Jovens a toda a Igreja.
Há uma escuta que tem raízes ainda mais profundas, e dela depende grande parte da vitalidade da escuta entre nós. A escuta tem raízes que se voltam para o alto. É o ABC de a toda vocação, que é sempre um encontro de chamamento e resposta, que se renova em cada novo despertar.
A escuta de Deus é um mistério que não pode ser contido em alguma prática ou momento particular. Realiza-se «por obra do Espírito Santo» e normalmente não acontece por saltos improvisados e repentinos, mas pelo progressivo amadurecimento que se realiza através de longas peregrinações, como as muitas de que nos fala a Escritura e que se verificam na vida dos nossos santos.
Há uma predisposição para a escuta de Deus, tanto mais preciosa quanto mais difícil na maioria dos contextos sociais em que vivemos, marcados pelo excesso constante de estímulos mediáticos e ritmos cada vez mais intensos de atividade. A predisposição preciosa é a de «nos dispormos ao silêncio».
O silêncio é a gramática através da qual se exprime a linguagem entre Deus e o homem.
Há uma palavra que desde sempre se distingue entre as demais, a palavra com que Ele nos fala: a Sagrada Escritura. Ela não se impõe, depende sempre da nossa escuta, da sintonia do coração e da sua familiaridade com o silêncio com Deus. Escutando esta Palavra, afetos e pensamentos começam a modelar-se por aquilo que o Evangelho nos revela, dia a dia. A escuta de Deus nas pessoas que nos rodeiam e nos acontecimentos que incidem sobre nós torna-se mais atenta, e vemos mais em profundidade.
Neste caminho, cresce a coerência entre o que se escuta e se anuncia e o que se vive. E a escuta de Deus que nos fala exige um exercício quotidiano, como faz um artista ou um atleta na especialidade em que se destaca.
1.3 BONS CRISTÃOS com a necessidade de Evangelizar e oferecer o primeiro anúncio e a catequese: «Esta sociedade, no seu início, era uma simples catequese» (MB IX, 61)
«Não deu passo, não pronunciou palavra, nada empreendeu que não visasse a salvação da juventude… Realmente tinha a peito tão somente as almas».5 Este testemunho de alguém que, talvez mais do que qualquer outra pessoa, conheceu Dom Bosco e “fez tudo a meias com ele”, faz-nos perceber de modo quase sensível a intensidade da caridade pastoral do nosso Pai, que nunca fugiu diante dos maiores desafios da pobreza, a começar pelas prisões de Turim, onde o padre Cafasso o levara para “aprender a ser padre”. Ao mesmo tempo, nunca deixou de propor as metas mais elevadas de crescimento espiritual a todos, tanto a Magone como a Sávio, adaptando-se ao caminho de cada um. Dito com a linguagem de hoje: «imitando a paciência de Deus, vamos ao encontro dos jovens no ponto em que se situa a sua liberdade».6
É surpreendente a modernidade desta abordagem pastoral, que sabe caminhar ao lado de todos os jovens, mesmo os mais provados (pensemos nas presenças da Família Salesiana nos campos de refugiados ou entre os migrantes), e encontrar justamente ali o terreno bom para a semente do Evangelho, sem proselitismo e sem temor, porque fé e vida nunca se “divorciaram” onde se permaneceu fiel ao carisma que o Espírito deu à Igreja com os nossos santos de família.
O Papa Francisco recorda-nos que nunca se deve renunciar ao primeiro anúncio, ou adiá-lo à espera de situações mais convenientes ou de tempos melhores. Ele nos diz:
Insisti muito na Exortação Evangelii Gaudium e creio ser oportuno lembrá-lo. Por um lado, seria um erro grave pensar que, na pastoral juvenil, «o querigma é deixado de lado em favor duma formação supostamente mais “sólida”. Nada há de mais sólido, mais profundo, mais seguro, mais consistente e mais sábio que esse anúncio. Toda a formação cristã é, primariamente, o aprofundamento do querigma que se vai, cada vez mais e melhor, fazendo carne». Por isso, a pastoral juvenil deveria incluir sempre momentos que ajudem a renovar e aprofundar a experiência pessoal do amor de Deus e de Jesus Cristo vivo. Fá-lo-á valendo-se de vários recursos: testemunhos, cânticos, momentos de adoração, espaços de reflexão espiritual com a Sagrada Escritura e, inclusivamente, com vários estímulos através das redes sociais. Mas nunca se deve substituir esta experiência feliz de encontro com o Senhor por uma espécie de “doutrinação”.7
Acreditamos realmente na importância do primeiro anúncio? Olhemos para o mundo juvenil no seu conjunto: as rapidíssimas mudanças que correm à velocidade digital criam uma formidável diversidade de culturas, de abordagens à vida no seu conjunto, criando um “fosso” entre gerações, talvez muito mais profundo em relação ao de épocas anteriores. Não será talvez uma terra ainda a evangelizar o mundo de quem nasceu depois do ano 2000? As gerações das redes sociais, muito além dos jovens deste milénio, nascidos nos tempos da internet, estão à espera de quem seja capaz de lhes levar pela primeira vez a luz e a força do Evangelho, falando a língua deles e sintonizando-se nas suas frequências.
«Quem enviarei? Quem irá por nós?» (Is 6,8). Estas antigas palavras de Isaías não poderiam ser mais modernas se as pensarmos nos lábios de toda a comunidade eclesial que se dirige a nós, Família Salesiana, como àqueles que por carisma, por dom do Espírito, nasceram para ser especialistas do encontro com os jovens, prontos a estar com eles tais como são e onde estão, mesmo nas diversidades de credo religioso. Abandonar este desafio missionário é como abandonar a Família Salesiana, o espírito que Dom Bosco nos transmitiu.
Atenção, porém, para não confundir o primeiro anúncio com algo pequeno, redutivo, tão “inócuo” que quase não deixa vestígio ou sinal de si.
Dom Bosco recordava com frequência que tudo começou com «uma simples catequese». A sua história, inseparável da dos jovens com os quais conviveu, mostra com toda clareza que, de facto, simples não significa de modo nenhum superficial.
Quando se chega à «experiência pessoal do amor de Deus e de Jesus Cristo vivo», frequentemente são os próprios jovens a tornar-se missionários e evangelizadores de quem os acompanha, porque eles pedem um testemunho e partilha da vida de uma fé autêntica e profunda.
Aqui está o génio de Dom Bosco: permanece acessível a todos e, com os seus jovens, não teme apontar abertamente para a santidade; nada menos do que isso!
Nesse caminho, abre-se um campo fascinante e exigente: fazer da “catequese” não apenas uma série de encontros de crianças e jovens, necessários para a Primeira Comunhão ou Crisma; e fazer da “teologia” não só uma série de exames a realizar para ser ordenado sacerdote. Catequese é crescer na compreensão da vida iluminada pela fé; e teologia é entrar com a mente e o coração na beleza do mistério de Deus como Ele se revelou em Jesus. Se, como membros da Família Salesiana, nos deixarmos fascinar por esta “luz suave” até nos apaixonarmos por ela e voltarmos a nutrir o coração e a mente com estes tesouros, também o nosso modo de ser educadores-pastores será iluminado. E digo mais: com um coração assim saberemos como viver e estar entre os jovens e as famílias que praticam outras religiões ou se professam agnósticos ou ateus. A atitude será de uma verdadeira partilha e de um simples testemunho no mais delicado respeito das diversas fés.
Como nos inícios do Oratório de Valdocco, o crescimento na fé só pode acontecer em comunhão: quanto mais intenso for o caminho espiritual de quem acompanha, mais o será também o dos jovens e do povo que, «mais por osmose do que por processos lógicos», tenderá a seguir os seus passos. Será, por sua vez, o caminho do seu povo a levar quem atua como pastor a crescer ainda mais, a viver mais próximo da fonte para responder à sede de quem lhe pede de beber, muitas vezes sem palavras, para lhes mostrar o Senhor.
1.4. BONS CRISTÃOS vivendo uma verdadeira espiritualidade salesiana
No Pentecostes, o Espírito Santo dá início ao tempo da Igreja e da missão. Graças ao Espírito, a espiritualidade e a missão caminham juntas. Não é possível separar a missão da espiritualidade nem a espiritualidade da missão. Por esta razão, quando não conseguimos viver a missão e a espiritualidade de modo integrado, muito provavelmente baterão à nossa porta o cansaço e a confusão ou contentar-nos-emos com «entreter» os outros com as nossas atividades, mas sem chegar a “tocar” profundamente a vida de cada um.
Retornar ao primeiro amor
Hoje, muitos sociólogos falam da sociedade do cansaço. O Papa Francisco diz que também nós, agentes pastorais, podemos viver cansados. Porque nos cansamos tanto? Podemos dizer que temos a agenda cheia de compromissos…, mas «… o problema nem sempre é o excesso de atividades, mas sobretudo são as atividades mal vividas, sem as motivações adequadas, sem uma espiritualidade que impregne a ação e a torne desejável».8 Evidentemente, a causa de muitos cansaços não deve ser procurada na nossa agenda, mas em nós mesmos, na falta de motivação e na desconexão com que vivemos a missão e a espiritualidade.
Para curar este cansaço, devemos entender as suas causas. Retornar ao primeiro amor dá vida nova.
Recordemos como Dom Bosco, nos últimos anos da sua vida, viu que se perdera o primeiro amor também no Oratório de Valdocco. Por isso, de Roma escreveu uma carta aos jovens e aos Salesianos do Oratório em que punha em confronto a vida e a alegria dos primeiros anos com a crise que se estava viver. Perdera-se no Oratório a alegria, a vida, a confiança. Em conclusão, era preciso retornar ao primeiro amor.
1.4.1. Espiritualidade
É verdade que a palavra espiritualidade está na moda, mas é igualmente verdade que ela é muito ambígua. Podemos ver um reflorescimento do desejo de espiritualidade em lugares e contextos muito diferentes, embora muitas propostas de espiritualidade que hoje são moda nada têm a ver com Jesus e o seu Evangelho.
Não obstante esta ambiguidade, é preciso reconhecer que o desejo de espiritualidade pode ser a porta de entrada para a vida cristã dos que andam à procura.
Nalguns jovens, reconhecemos um desejo de Deus, embora não possua todos os delineamentos do Deus revelado. Noutros, podemos vislumbrar um sonho de fraternidade, o que já não é pouco. Em muitos, existe um desejo real de desenvolver as capacidades de que são dotados para oferecerem algo ao mundo. Nalguns, vemos uma sensibilidade artística especial, ou uma busca de harmonia com a natureza. Noutros, pode haver uma grande necessidade de comunicação. Em muitos deles, encontramos o desejo profundo duma vida diferente. Trata-se de verdadeiros pontos de partida, energias interiores que aguardam, disponíveis, uma palavra de estímulo, luz e encorajamento. 9
Esta atitude de abertura leva-nos a perguntar-nos o que estamos a fazer como Família Salesiana em prol dos jovens e adultos que andam “em busca”. O que podemos oferecer é alguma luz e encorajamento. Esta preocupação é urgente, sobretudo nos contextos em que os sinais religiosos perderam força e vigor, mesmo que agora esses contextos estejam presentes em todos os lugares.
Saber colocar-se em comunicação com quem anda em busca significa abrir pontos de relação. Talvez seja isto que o Santo Padre pede quando diz: «A clarividência de quem foi chamado a ser pai, pastor ou guia dos jovens consiste em encontrar a pequena chama que continua a arder, a cana que parece quebrar-se (cf. Is 42, 3) mas ainda não se quebrou. É a capacidade de identificar percursos onde outros só veem muros, é saber reconhecer possibilidades onde outros só veem perigos. Assim é o olhar de Deus Pai, capaz de valorizar e alimentar os germes de bem semeados no coração dos jovens. Por isso, o coração de cada jovem deve ser considerado “terra sagrada”, diante da qual devemos “tirar as sandálias” para poder aproximar-nos e penetrar no Mistério».10
E reconhecemos muito bem nesta clarividência o estilo e o modo com que o nosso amado pai Dom Bosco se aproximava dos seus jovens e os acompanhava.
1.4.2. Espiritualidade cristã
No vasto campo da espiritualidade, colocamo-nos dentro da espiritualidade cristã. Há uma espiritualidade cristã fundamental que nasce da mensagem essencial do Evangelho e traz também a marca dos valores mais caraterísticos de cada momento da história dentro da Igreja. Não podemos esquecer que o cristianismo encarna na história e visa a transformação do homem concreto na sua situação cultural. Por isso, a espiritualidade cristã deve responder às necessidades de todos os tempos e exprimir-se com as categorias do tempo presente. E não resta dúvida de que os valores nascidos do Evangelho em todos os contextos, em todas as culturas e em todos os tempos, são pontos muito preciosos de comunicação, diálogo e encontro com as outras religiões.
O ponto decisivo na vida espiritual é descobrir o mistério de Deus no mundo e na nossa vida porque «Deus está a agir na história do mundo, nos acontecimentos da vida, nas pessoas que encontro e que me falam».11 Temos aqui a fundamentação do discernimento. Porque Deus não está no ócio, mas em ação, e a missão da Igreja é fazer com que cada homem e cada mulher encontrem o Senhor que já é Presença e age nas suas vidas e nos seus corações. A partir deste modo de entender a missão, a pastoral juvenil tem como objetivo ajudar todo o jovem a encontrar-se com o mistério de Deus que age na história, na sua vida e no seu coração.
Dom Bosco sempre soube ler os acontecimentos da vida a partir da perspetiva de Deus. Para viver da perspetiva de Deus é necessário um centro vital que unifique a pessoa, desde que uma pessoa espiritual seja uma pessoa sólida, unificada e bem estruturada graças à ação do Espírito Santo. Neste sentido, a pessoa espiritual vive consciente de ser filha de Deus, possui a inteligência da fé que lhe permite perceber o mistério de Deus e o sentido do mundo e da história, e vive a sua fé numa comunidade de irmãos ao serviço do Reino de Deus.
O que foi dito ajuda-nos a apreciar e entender de modo extraordinário a importância que o Papa Francisco dá à espiritualidade no seu Magistério. Aborda-a em todos os seus documentos:
- A espiritualidade do discípulo missionário.12
- A espiritualidade ecológica.13
- A espiritualidade matrimonial e familiar.14
- A santidade como origem e meta da vida espiritual.15
«Espero (diz o Papa Francisco) que possas manter a autoestima e levar-te tanto a sério que procures o teu crescimento espiritual».16 Porque, sem dúvida, a espiritualidade toca a vida. Uma vida feita de sonhos, experiências, relações, projetos e opções. Devemos ser capazes de animar os nossos jovens a correr o risco de sonhar e de escolher; a viver intensamente e experimentar; a apreciar a amizade com Jesus, a crescer e amadurecer; a viver a fraternidade; a empenhar-se; a ser missionários corajosos.
1.4.3. Espiritualidade Salesiana
Falamos de espiritualidade salesiana como expressão carismática dentro do “grande rio” da espiritualidade cristã. O substantivo é a espiritualidade cristã, o adjetivo é o estilo carismático concreto.
A Espiritualidade Salesiana não pode ser compreendida sem se entender a experiência espiritual de Dom Bosco. O nosso pai foi um sacerdote que se dedicou à educação e evangelização dos jovens, fundador de diversos movimentos apostólicos em favor da juventude e pai de uma família carismática com uma clara e forte espiritualidade apostólica.
Por isso a Espiritualidade Salesiana tem as suas raízes na experiência espiritual vivida por Dom Bosco e pelos primeiros Salesianos, as primeiras Salesianas, os leigos colaboradores e os jovens do Oratório. Nesta tradição espiritual vemos um modo particular de entender a vida cristã, a ação educativa, pastoral e social, a proposta pedagógica e espiritual a que chamamos Sistema Preventivo. A nossa Espiritualidade apresenta algumas peculiaridades que lhe são muito próprias: é espiritualidade do quotidiano, espiritualidade pascal da alegria e do otimismo, espiritualidade da amizade e da relação pessoal com Jesus, espiritualidade de comunhão eclesial, espiritualidade mariana, espiritualidade do serviço responsável que sempre propõe, como fez Dom Bosco, a meta de ser «bons cristãos e honestos cidadãos». Procuramos promover a dignidade de todas as pessoas e dos seus direitos; exercitar-nos em viver com generosidade na família e favorecer a solidariedade sobretudo com os mais pobres; realizar o próprio trabalho com honestidade e competência; promover a justiça, a paz e o bem-comum na política; respeitar a criação e favorecer o acesso à cultura. Tudo isto faz parte da nossa espiritualidade, do nosso modo de ser Família Salesiana e mensagem evangélica segundo o carisma de Dom Bosco nos diversos lugares do mundo.
1.5. BONS CRISTÃOS perante o desafio dos ambientes não-cristãos, pós-crentes ou pós-cristãos
Vivemos num mundo em que encontramos não só jovens crentes, mas também jovens que estão a afastar-se da fé, jovens que professam outras confissões religiosas e jovens que não professam nenhuma delas.
Esta pluralidade de situações permite-nos recordar o mandato missionário recebido no Pentecostes. Onde nos envia Jesus? Não há fronteiras, não há limites: envia-nos a todos, dado que para o Evangelho não há limites nem fronteiras. «Não tenhais medo de ir e levar Cristo a todos os ambientes, até às periferias existenciais, incluindo quem parece mais distante, mais indiferente. O Senhor envia-nos a todos, quer que todos sintam o calor da sua misericórdia e do seu amor. E convida-nos a levar, sem medo, o anúncio missionário aos locais onde nos encontrarmos e às pessoas com quem convivermos: no bairro, no estudo, no desporto, nas saídas com os amigos, no voluntariado ou no emprego, é sempre bom e oportuno partilhar a alegria do Evangelho».17
É por isso que a missão é tão estimulante quanto exigente. Em que devemos pensar para aproximar-nos a nível pastoral também dos jovens que se afastam da fé e daqueles que professam outras religiões ou que não professam nenhuma? Ou seja, os contextos não-cristãos ou pós-cristãos.
Ameaçam-nos alguns perigos
Nos contextos cristãos, bem como nos não-cristãos ou pós-cristãos, devemos evitar o fundamentalismo e o relativismo, tal com o exclusivismo e o sincretismo.
O fundamentalismo, acreditando ter a verdade no bolso, fecha-se ao diálogo, faz-se “forte” e intransigente em suas convicções, mas de modo reacionário e intolerante. O relativismo, por sua vez, parte da convicção de que não há certezas ou verdades cognitivas ou normativas absolutas. O ambiente cultural pós-moderno tem no relativismo o seu habitat natural e vê como agressão insuportável qualquer pretensão de verdade. Nem o fundamentalismo nem o relativismo ajudam na proposta pastoral.
O Instrumentum Laboris do Sínodo sobre os jovens oferece uma pista interessante: «Não se trata de renunciar à especificidade mais preciosa do cristianismo para se conformar com o espírito do mundo, nem é isso o que os jovens pedem, mas é preciso encontrar o modo de transmitir o anúncio cristão em circunstâncias culturais mudadas. De acordo com a tradição bíblica, é bom reconhecer que a verdade tem uma base relacional: o ser humano descobre a verdade no momento em que a experimenta por parte de Deus, o único verdadeiramente confiável e digno de confiança».18 O Instrumentum Laboris sugere percorrer o caminho relacional e intensificar a pastoral relacional. Parece indicar que a porta de entrada está na atenção às relações. Bem sabemos que o Sistema Preventivo de Dom Bosco sempre foi um exercício prático desse princípio relacional.
Outros dois perigos são o exclusivismo e o sincretismo. O exclusivismo apresenta duas faces. Uma refere-se à oferta de uma proposta dirigida só a uma elite, aos jovens e adultos mais preparados. A segunda refere-se à censura de qualquer outra proposta pastoral, com a desculpa de respeitar a sensibilidade de todas as pessoas. Concluindo, seria uma proposta pastoral apenas para poucos ou mesmo a ausência absoluta de uma proposta pastoral. Nenhum destes caminhos é bom. Se a nossa proposta pastoral não der atenção aos mais afastados, estaremos a mostrar a nossa pouca confiança no projeto evangélico e talvez o quanto a nossa ideia de pastoral é elitista. E se optarmos pela censura, a nossa confiança no projeto de evangelização é muito reduzida. A censura será o melhor caminho para não se ocupar pastoralmente de ninguém.
A outra face da moeda é o sincretismo. A proposta pastoral sincretista carateriza-se pela mistura de propostas provenientes de diversas visões de mundo. A proposta sincretista busca sempre novidades sem aplicar qualquer critério de discernimento.
Podemos então perguntar-nos se existem propostas possíveis. Sim! Existem:
Cuidar das sementes do Verbo
A primeira proposta é procurar e cuidar das sementes do Verbo. O Concílio Vaticano II encorajou esta doutrina que, por outro lado, se apoia numa tradição de muitos séculos, já formulada no século II por um Padre da Igreja como São Justino.
Apelando para esta doutrina, o Concílio quis reconhecer os diversos graus de verdade que há nas diversas tradições religiosas e culturais. O Verbo já está presente nessas sementes, embora apenas em germe, e a direção para onde caminham é o Verbo. Isto é de grande ajuda na nossa proposta pastoral nos contextos não-cristãos ou pós-cristãos que nos pedem para procurar espaços e lugares de entendimento e colaboração. Temos esses “pontos de encontro” em alguns aspetos como o valor do humano e da dignidade humana, a busca da paz, a aquisição de virtudes como a compaixão e o respeito pelo outro, o estrangeiro, o diferente; o cuidado da criação, a ecologia… Todas estas motivações são também de grande atualidade e sensibilidade social mundial e isto certamente nos sugere que podemos começar pelo que é simples.
O diálogo
A segunda proposta pastoral em contextos não-cristãos e pós-cristãos deve ser o diálogo, e com ele voltamos à nossa reflexão sobre o tema relacional. Sublinho a importância do diálogo, que carece de outros atributos como saber escutar, falar de modo compreensível, ser capaz de propor experiências de comunhão. O diálogo não consiste apenas em dar sugestões. Quando dialogamos temos de procurar compreender a experiência vivida pelo outro e o seu modo de pensar. Por isso, é sempre importante favorecer o clima de respeito perante as inegáveis diferenças, como também reconhecer que o diálogo requer humildade para admitir as próprias limitações e confiança para valorizar as próprias riquezas.
O diálogo pastoral de que falamos é, antes de tudo, uma conversação sobre a vida humana, em atitude de abertura aos jovens, compartilhando as suas alegrias e as suas dificuldades, os seus desejos e as suas esperanças, os seus valores religiosos, tratando-se de um exercício de encontro pessoal e comunitário que nos enriquece muitíssimo: «Assim aprendemos a aceitar os outros, na sua maneira diferente de ser, de pensar e de se exprimir. Com este método, poderemos assumir juntos o dever de servir a justiça e a paz, que deverá tornar-se um critério básico de todo o intercâmbio». 19
O valor do testemunho
Outra perspetiva não menos importante é a que se refere ao testemunho. O valor do testemunho baseia-se na coerência, no empenho e na credibilidade. Os jovens podem perdoar muitos erros nossos, mas pedem-nos que sejamos coerentes, credíveis e empenhados em favor dos outros. Estes são os testemunhos do nosso tempo.
O anúncio
O Papa Francisco recorda insistentemente a importância de anunciar o Evangelho. «Não pode haver verdadeira evangelização sem o anúncio explícito de Jesus como Senhor e sem existir uma primazia do anúncio de Jesus Cristo em qualquer trabalho de evangelização.20 O anúncio jamais deverá ser proselitismo, e em cada contexto terá uma expressão diferente; por exemplo, o anúncio do Evangelho será diferente em contextos não-cristãos ou pós-cristãos.
Tal anúncio encerra na sua essência as três grandes verdades do cristão: Deus ama-nos, Cristo salva-nos e o Espírito dá vida e acompanha na vida. Como fazer este anúncio? Principalmente com a certeza de saber que o anúncio se propõe e permanece aberto para que a Graça do Espírito possa suscitar a fé. Além disso, o anúncio deve ser feito com um estilo marcado pela familiaridade e proximidade, e deve ser personalizado, mesmo estando em grupo ou em comunidade, ou seja, deve chegar a cada pessoa. Nenhum recurso ou estratégia pastoral poderá jamais substituí-lo.
«Confessai Cristo como Senhor, sempre dispostos a dar a razão da vossa esperança a todo aquele que vo-la peça; com mansidão e respeito, mantende limpa a consciência» (1Pd 3,15-16a)
1.6. BONS CRISTÃOS descentrados de si mesmos
A missão é uma caraterística dos discípulos do Senhor. Recordemos que quando o Papa Francisco descreve, na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, as caraterísticas da espiritualidade do discípulo missionário, coloca o mandato missionário no mais profundo do ser humano. «A missão no coração do povo não é uma parte da minha vida, ou um ornamento que posso pôr de lado; não é um apêndice ou um momento entre tantos outros da minha vida. É algo que não posso arrancar do meu ser, se não me quero destruir. Eu sou uma missão nesta terra, e para isso estou neste mundo.»21 O Santo Padre coloca a missão no centro da existência.
1.6.1. A tua vida para os outros
O encontro com Deus tira-me para fora de mim mesmo para ir em direção aos outros. Trata-se, segundo alguns, da “antropologia do dom”, que pode ser sintetizada com a expressão “a tua vida para os outros”. Por isso, a pessoa atenta aos outros é uma pessoa capaz de um olhar atento e compassivo, em vez da indiferença que tanto se enraíza no coração de muitas pessoas nestes tempos, tornando-nos incapazes de ter compaixão diante do clamor alheio. A pessoa aberta aos outros é também capaz de reconhecer o dom recebido pondo os próprios talentos ao serviço dos outros. A dedicação aos outros, e sobretudo aos mais carenciados, transforma-se realmente numa prática de fé e é fundamento de toda vida cristã.
«Quando um encontro com Deus se chama “êxtase” é porque nos tira fora de nós mesmos e nos eleva, cativados pelo amor e pela beleza de Deus. Mas podemos também ser levados a sair de nós mesmos para reconhecer a beleza escondida em cada ser humano, a sua dignidade, a sua grandeza como imagem de Deus e filho do Pai. O Espírito Santo quer impelir-nos a sair de nós mesmos, para abraçar os outros com o amor e procurar o seu bem». 22
1.6.2. Do “eu” ao “eis-me aqui”
Este modo de entender a vida aberta aos outros convida-nos a passar do “eu” ao “eis-me aqui”. A cultura do “eu” explica muito bem o mundo em que vivemos. Esta cultura oferece grandes possibilidades (crescimento pessoal, autonomia, desenvolvimento da pessoa), mas também esconde grandes fragilidades (pessoas que ficam afastadas e que são pouco abertas aos outros, narcisismo, presentismo).
A antropologia bíblica apresenta o crente como aquele que é capaz de dizer “Eis-me aqui”. Na Escritura vemos estas palavras pronunciadas em momentos significativos da vida de Abraão, Moisés, Samuel, Isaías, Maria de Nazaré, do próprio Jesus que, segundo a Carta aos Hebreus, entrando neste mundo, disse: «Eis-me aqui, Senhor, eu venho para fazer a tua vontade» (Hb 10,7).
Dando importância ao valor do “eu”, e não poderia ser diversamente, podemos entender a vida cristã como um caminho de transformação do “eu” em “eis-me aqui”. Dar este passo permite abrir-se a um mistério que transcende. Quando dizemos com fé “eis-me aqui”, gera-se em nós uma atitude e uma disposição que abre a existência ao Espírito Santo que orienta e acompanha a nossa vida, para encontrar o modo de ser e de viver que mais nos identifica como seres humanos. É a essência de toda a vocação, com olhar de crente em Jesus Cristo, e «a vida que [Ele] nos dá é uma história de amor, uma história de vida que quer misturar-se com a nossa e criar raízes na terra de cada um».23
2. HONESTOS CIDADÃOS
2.1 Os jovens esperam-nos na “Casa da Vida”
Uma das melhores e mais atuais interpretações que podemos fazer da nossa missão salesiana é continuar a garantir a nossa opção de ir ter com os jovens onde eles se encontram e nas situações em que vivem. Os jovens estão à nossa espera, e é a vida quotidiana deles, o presente, o lugar onde devemos encontrá-los. Não existiria promoção humana nem compromisso social, nem sequer evangelização e itinerário de fé, se não houvesse como ponto de partida o lugar onde os jovens e as famílias e todas as pessoas se encontram.
A capacidade de ir ao encontro deles, aprendida de Dom Bosco, fala em nós de compromisso com as suas vidas, fala de tomar a sério a situação deles e, sobretudo, do desejo profundo de fazer comunhão com eles e da causa deles, a nossa causa. É por isso que não podemos esquecer o nosso carisma fundacional como Família Salesiana de ir ter com os jovens onde eles se encontram, e com eles, precisamente aí, trabalhar empenhados em melhorar e transformar uma realidade que sempre nos interpela. Consequentemente, todo o processo de promoção humana deve ser visto como parte, e não como fim em si mesmo, de um processo mais profundo e amplo de promoção, que leva a pessoa a fazer da própria vida um espaço de encontro com os outros, de intercâmbio de dons para construir uma sociedade mais justa e digna para todos, como antecipação do Reino dos Céus, que já se constrói nesta terra, caso haja em nós os princípios da boa-nova de Jesus.
Não creio que se deva admitir que o compromisso social, a “militância” em associações que promovem o bem dos jovens e da sociedade sejam instâncias incompatíveis com a proposta evangélica. Pode-se captar no Pai Nosso a “política” da fraternidade e da justiça, da solidariedade, da reconciliação, do respeito, da igualdade e da proteção dos mais frágeis. Não se pode dizer que os diferentes modos de fazer o bem sejam incompatíveis. Basta que esse bem considere a pessoa em seu conjunto e todas as pessoas, evitando discriminações e particularismos.
Quando apresentavam a Jesus as situações dos que
«não eram dos nossos», Ele logo respondia fazendo seus os que não Lhe eram explicitamente contrários. Quem não é contra nós, está connosco.
2.2. HONESTOS CIDADÃOS educando os nossos jovens à Cidadania e ao compromisso social
Talvez se trate de um dos “lugares comuns” nos quais, por vezes, nos baseamos para nos livrarmos de questões incómodas, como quando se diz que Dom Bosco não se metia em política, dizendo que a sua política era a do «Pai Nosso». É preciso esclarecer, honestamente, de que política se trata.
Vale a pena refletir sobre esse tema e descobrir que levar as orientações do Pai Nosso ao campo da política só confirma o esforço humano e evangélico em favor do que preocupa as pessoas ou que condiciona as suas vidas. Mais do que dar um sentido diferente ao Pai Nosso, reduzindo-o a um espiritualismo vazio, desinteressado das coisas “aqui da terra”, deve-se dar-lhe um sentido a partir de Deus que busca o bem e a felicidade da humanidade, de todos os seus filhos e filhas.
Para os nossos jovens de hoje, habituados como estão às coisas práticas, aos resultados fáceis, ao efeito imediato das suas ações, com as dificuldades que encontram para trilhar caminhos e itinerários ou aceitar a dificuldade da sementeira e a longa espera antes de ver os frutos, é imprescindível educar ao compromisso social como itinerário que pode introduzir muitos deles no caminho da vida cristã.
Poderíamos dizer que não há vida cristã autêntica sem compromisso social, ou sem justiça e caridade, sem serviço em favor dos outros, sobretudo, dos mais necessitados, dos mais frágeis, dos “sem voz”, abandonados e descartados, como também não há o bom samaritano sem o homem em dificuldade, ou Dom Bosco sem os jovens pobres, abandonados e em perigo.
Por outro lado, não pode haver autêntica polí tica e ação social sem a promoção da pessoa. Compromisso social e ação política devem ser expressão da prioridade que as pessoas e a promoção humana têm dentro da sociedade.
Pode ser que uma certa dicotomia que alguns fortemente enfatizam entre o caminho da santidade (vida espiritual) e o compromisso social (vida do cidadão) possa tornar-se concreta quando os objetivos são a dignidade do trabalho e o desenvolvimento cristão através dele, a fé pelas obras, o compromisso com os pobres e a justiça social como experiência coerente do Evangelho.
A dimensão social não é estranha à experiência da fé, e é exatamente no compromisso social que se deve tornar mais profunda a dimensão transcendente de toda a ação humana. O Papa Francisco na Christus vivit faz uma leitura interessante da capacidade que os jovens têm de se comprometer socialmente e atribui à amizade com Cristo a entrega à vida plena. Trata-se de uma proposta pastoral para nós educadores e evangelizadores dos jovens:
«Quero encorajar-te a assumir este compromisso, porque sei que o teu coração, coração jovem, quer construir um mundo melhor. Acompanho as notícias do mundo e vejo que muitos jovens, em tantas partes do mundo, saíram às ruas para expressar o desejo de uma civilização mais justa e fraterna. Os jovens nas ruas; são jovens que querem ser protagonistas da mudança. Por favor, não deixeis para outros o ser protagonista da mudança! Vós sois aqueles que detêm o futuro! Através de vós, entra o futuro no mundo. Também a vós, eu peço para serdes protagonistas desta mudança. Continuai a vencer a apatia, dando uma resposta cristã às inquietações sociais e políticas que estão surgindo em várias partes do mundo. Peço-vos para serdes construtores do futuro, trabalhai por um mundo melhor. Queridos jovens, por favor, não “olheis da sacada” a vida, entrai nela. Jesus não ficou na sacada, mergulhou… Não olheis a vida da sacada, mergulhai nela, como fez Jesus. Mas sobretudo, duma forma ou doutra, lutai pelo bem comum, sede servidores dos pobres, sede protagonistas da revolução da caridade e do serviço, capazes de resistir às patologias do individualismo consumista e superficial».24
2.3. HONESTOS CIDADÃOS educando os nossos jovens ao compromisso do serviço político
«A sociedade que Dom Bosco tinha em mente era uma sociedade cristã,
construída sobre os fundamentos da moral e da religião. Hoje, a visão da sociedade transformou-se: vivemos numa
sociedade secular, construída sobre
os princípios da igualdade, da liberdade, da participação, mas a
proposta educativa salesiana conserva a sua
capacidade de formar um cidadão consciente das próprias responsabilidades
sociais, profissionais, políticas, capaz de empenhar-se pela justiça e pela
promoção do bem comum, com uma especial sensibilidade e preocupação pelos
grupos mais frágeis e marginalizados. Deve-se, pois, trabalhar para uma mudança
de critérios e para a visão da vida, para a promoção da cultura do outro, de um
estilo de vida sóbrio, de uma atitude constante de gratuidade, de luta pela
justiça e a dignidade de toda vida humana».25
É um facto que, protegidos pelas “regras do jogo”, muitos sistemas sociopolíticos contemporâneos dominam ou subjugam os cidadãos mais do que nós gostaríamos ou poderíamos acreditar. Os nossos ambientes educativos devem preparar os jovens para responderem a estas questões com sentido político e participação cívica responsável. Pergunto-me:
» Como podemos ajudar os jovens a adquirir conhecimentos, capacidades, competências e atitudes essenciais para poderem desenvolver uma cidadania efetiva, livre e coerente?
» Como Família Salesiana, como podemos ser cidadãos salesianamente corresponsáveis neste tempo?
Num presente frágil e fragmentado, em que a dimensão política da vida é pensada muitas vezes como conivente com a corrupção e a falta de ética, em que há a anemia de uma práxis que visa sobretudo o individualismo, devemos propor-nos novamente educar os nossos jovens ao compromisso no serviço da “cidadania honesta” na esfera político-social.
Entre as muitas políticas (económicas, sociais, educativas, de saúde, internacionais…) podemos escolher como Família Salesiana a política do «Pai Nosso», do «pão quotidiano», dos «pés-descalços»,
«sempre» dos mais pobres (Mc 14,7), dos necessitados da verdadeira política de justiça e caridade. Queremos viver e devemos continuar a viver no “politicamente incorreto” porque escolhemos ficar do lado daqueles que não têm voz. Dizia-o Dom Romero: «Só se descobre, e se descobre corretamente, a dimensão política da fé através de uma atividade concreta ao serviço dos pobres (…), que se encarna no seu mundo, lhes anuncia a boa-nova, dá esperança, encoraja os seus processos de libertação, defende a sua causa e participa no destino deles».26
Por isso, como educadores e como cristãos, como Família Salesiana de Dom Bosco hoje, deseja mos uma ação política que seja social, ação que contribua para a solidariedade, para a fraternidade humana, para o verdadeiro encontro que aceita e respeita o outro, para a realização do «Reino de Deus» aqui e agora.
Educar os nossos jovens nesta visão e neste critério de participação política, orientada para o bem-comum, razão de ser e finalidade da vida política, implica que se eduque com forte convicção à:
- dignidade e aos direitos dos homens, procurando sempre o bem integral da comunidade e da pessoa humana;
- à guarda e tutela da dignidade transcendental da pessoa, criada à imagem de Deus;
- à promoção do desenvolvimento integral, sustentável e solidário de tudo o que é humano e de todos os seres humanos;
- à globalização da caridade e da solidariedade, sobretudo com os pobres, frágeis e excluídos, contra a enorme bolha da indiferença, da exclusão e do egoísmo;
- à realização da fraternidade como princípio regulador da ordem económica e do desenvolvimento de todas as potencialidades dos povos;
- à difusão da subsidiariedade como participação livre e responsável a partir das bases de uma sociedade democrática onde todos têm voz e podem participar;
- ao destino comum dos bens da terra, como cultura do encontro e da participação; da mesma forma, o cuidado da casa comum, com uma ecologia natural e humana de convivência, harmonia, paz e bem-estar presente e futuro.
Isto exige de nós uma ação educativa que desperte e cultive a humanidade de todos os homens e mulheres, que os faça crescer na autoconsciência da sua vocação, dignidade e destino; uma ação educativa, também das “novas gerações políticas”, para que não se afastem da participação na vida pública, apaixonados pelo bem, carismaticamente presentes onde se tomam as decisões sobre o futuro.
Como diz o Papa Francisco: «O futuro da humanidade não está apenas nas mãos dos políticos, dos grandes líderes, das grandes empresas. Sim, a responsabilidade deles é enorme. Mas o futuro está sobretudo nas mãos das pessoas que reconhecem o outro como um “tu”, e a si mesmos como parte de um “nós”».27 Um “nós” que pede para ir além do silêncio, além da indiferença, para que todos nós, cidadãos deste tempo, possamos cumprir a nossa missão na comunidade.
Este olhar não é estranho ao que, essencialmente, nos identifica como carisma salesiano. Como exemplo, sirva o das Constituições e dos Regulamentos SDB quando dizem: «A dimensão social da caridade pertence à educação da pessoa social e politicamente empenhada em favor da justiça e da construção de uma sociedade mais justa e mais humana, plenamente inspirada no Evangelho, que também aparece em muitos documentos dos diversos Grupos da nossa grande Família».28
O Beato Alberto Marvelli, oratoriano de Rimini, foi um exemplo de tudo isto. Sentiu e viveu o compromisso na política como um serviço e uma resposta da expressão da fé vivida no mundo, na “polis”, procurando encarnar na sua vida os ideais de solidariedade e justiça que a Igreja do seu tempo pregava e que ele conhecia graças à leitura das encíclicas sociais. Para ele, a política era amor, era consequência última da caridade social e instrumento da verdade. São João Paulo II assim o descrevia na homilia da sua beatificação: «Na oração, ele buscava inspiração também para o compromisso político, convicto da necessidade de viver plenamente como filho de Deus na história, para transformá-la em história de salvação». Um jovem que se deixou educar na escola do compromisso sociopolítico por uma ação de síntese entre fé e vida para a transformação do mundo. Alberto entendeu muito bem com a sua vida o que significava o serviço aos outros na cidadania.
Por isso, continua a ser um caminho indispensável
«avançar em vista da confirmação atualizada da “opção social, política e educativa” de Dom Bosco. Isto não significa promover um ativismo ideológico, ligado a determinadas opções político-partidárias, mas formar para a sensibilidade social e política que leva a investir a própria vida como missão pelo bem da comunidade social, com referência constante aos inalienáveis valores humanos e cristãos». 29
Este é um desafio na nossa educação sociopolítica das jovens gerações no qual ainda temos de crescer muito. «Ser honesto cidadão comporta hoje, para o jovem, promover a dignidade da pessoa e os seus direitos, em todos os contextos; viver com generosidade na família e preparar-se para formar a sua própria família na base da entrega recíproca; favorecer a solidariedade, especialmente em relação aos mais pobres; realizar o próprio trabalho com honestidade e competência profissional; promover a justiça, a paz e o bem comum na política; respeitar a criação e favorecer a cultura».30
A educação tem uma dimensão política em si mesma: a ação educativa é um modo de intervir no mundo. Isto implica dar maior atenção à dimensão política da educação, da cidadania, do compromisso com a sociedade, com as famílias dos nossos jovens e com eles próprios.
Hoje é, e será sempre, um grande desafio do nosso ser educadores tornar possível uma realidade que gere novos modelos éticos. Por isso, não podemos contentar-nos que as nossas obras educativas produzam laureados mas não cidadãos comprometidos com a mudança, críticos diante de realidades diferentes, competentes não só pela formação recebida mas capazes de transformar a realidade como agentes de mudança e melhoria, de esperança e renovação no mundo da economia, da política, da educação, do trabalho, do compromisso social, dos mass media…, construtores de um novo mundo de cidadania ativa, protagonistas do bem comum. Como educadores da Família Salesiana, consagrados e leigos, devemos continuar neste caminho com convicção de modo que, lançada a semente, ela possa crescer com o tempo e tornar-se atitude e estilo de vida.
2.4. HONESTOS CIDADÃOS educando os nossos jovens à honestidade e legalidade
Perguntas há que, no meu entender, não podemos deixar de nos fazer quando pensamos educar e acompanhar os nossos jovens na sua formação como honestos cidadãos capazes de vencer as tentações do que é fácil, do dinheiro conquistado sem esforço ou profissionalismo.
» Como podemos ajudar os adolescentes e jovens que encontramos todos os dias a tomarem decisões e resolverem os problemas nas suas vidas com verdade e honestidade?
» Como podemos oferecer experiências que os ajudem a ganhar confiança em si mesmos e, ao mesmo tempo, reconhecerem a retidão dos comportamentos?
Deveríamos ser capazes de educar à verdade que liberta, à beleza da transparência, sem vidas duplas ou autoenganos, sem cair nas formas de escravidão que oprimem ou nas respostas sem ética que fragilizam a pessoa na sua interioridade. Jesus viveu pessoalmente com a honestidade e a transparência do seu anúncio: restituindo a liberdade aos prisioneiros, a vista aos cegos, a liberdade aos oprimidos e proclamando um ano de graça do Senhor (cf. Lc 4,18-19); lavando os pés aos seus discípulos como exemplo de serviço aos outros, vivendo diante de todos as «riquezas insondáveis» de amor e verdade que lhe custaram a vida na cruz. Sofreu na própria carne a injustiça estrutural que corrompe devido ao egoísmo, à autorreferencialidade, à busca dos próprios interesses e à mentira que, repetida muitas vezes, se torna “verdade” até matar.
Como educadores devemos pôr em prática e favorecer a honestidade e a legalidade. De que maneira? Com a prevenção. Acontece com frequência nos nossos dias escutar muitos “cânticos de sereias” que propõem como muito natural obter tudo facilmente por caminhos que corrompem a interioridade da pessoa e arruínam a integridade, a força, a verdade do que somos. «A sociedade no seu conjunto é chamada a empenhar-se concretamente para contrariar o cancro da corrupção nas suas várias formas (…). A corrupção é uma das chagas mais dilacerantes do tecido social, porque o prejudicam gravemente tanto no plano ético como no económico: com a ilusão de lucros rápidos e fáceis, na realidade empobrece a todos, destruindo a confiança, a transparência e a confiabilidade no interior do sistema».31
» O que estamos a fazer como educadores para reforçar preventivamente na vida dos nossos jovens a convicção sobre a necessidade de ser honestos?
» Que exemplos, que ideias, que conteúdos estamos a transmitir para que os jovens, e também as suas famílias, não cheguem a aceitar como normal a injustiça, a mentira, a falsidade e a vantagem pessoal a qualquer preço?
» O que estamos a construir com a educação e os valores evangélicos em aspetos essencialmente humanos como a consciência, a capacidade crítica, a denúncia em vista da verdade, da autenticidade e da justiça?
A corrupção é um «processo de morte», que se tornou habitual em muitas sociedades e é, certamente, um verdadeiro mal e um grave pecado (do qual não se fala), ainda que, todavia, não possa arruinar a esperança trazida pelo Senhor Jesus. Esperança que devemos semear como valor em todos os nossos jovens. E sabendo que as escolas e associações juvenis são sempre instrumentos de educação cívica, é de importância vital que quem se ocupa da educação e da sociedade se pergunte que tipo de cidadão os nossos programas educativos pressupõem. Os educadores sofrem todos os dias enormes pressões para reduzir a educação ao ensino e à aprendizagem de matérias e à preparação de exames.
Gostaria de pensar que a maioria dos educadores, ou pelo menos os educadores das presenças da Família Salesiana no mundo, acreditam que as escolas, além de ensinar as crianças a ler e a escrever, a resolver problemas de matemática e a entender a ciência e a história, e que sirvam também como uma admirável influência na visão do mundo e, portanto, são instrumento importante e poderoso para dar forma à nossa sociedade, mudando-a para melhor. É importante ensinar os jovens a questionar-se e a pôr em discussão o que nos é proposto como ideais de vida; a expor os próprios pontos de vista e as próprias perspetivas; a ter em consideração os seus ambientes e as circunstâncias específicas de vida, o seu passado e os sonhos para o futuro; a considerar-se a si mesmos como cidadãos ativos, disponíveis, capazes, críticos e bem preparados para influenciar a vida pública.
Educar significa dizer tudo isto. «Educar significa “prevenir”, em todas as suas possíveis aceções. Educar exprime-se em “acolher”, em “dar novamente a palavra” e em “compreender”. Educar significa ajudar os indivíduos a reencontrar-se, acompanhá-los com paciência no caminho da recuperação de valores e da confiança em si; comporta a reconstrução das razões de viver, descobrindo a beleza da vida. Educar fala da renovada capacidade de diálogo, mas também da proposta rica de interesses e solidamente ancorada no que é fundamental; envolver os jovens em experiências que os ajudem a perceber o sentido do esforço quotidiano; oferecer instrumentos fundamentais para ganhar o próprio sustento, tornando-os capazes de agir como sujeitos responsáveis em todas as circunstâncias. Educar exige conhecer as problemáticas sociais juvenis do nosso tempo».32
2.5. HONESTOS CIDADÃOS sensíveis e corresponsáveis num mundo em movimento e migração
Permitam-me, como exemplo do que desejo afirmar, fazer referência ao que vivi pessoalmente nas diversas visitas destes anos. Fiquei muito admirado com a enorme criatividade e com o trabalho dos meus irmãos e da Família Salesiana, que souberam dar respostas ao impressionante fenómeno dos nossos dias que é a migração humana. Constatei-o em Kakuma, um campo de refugiados no norte do Quénia que acolhe cerca de 190.000 pessoas. Os meus irmãos SDB constituem a única instituição autorizada a viver dentro do campo, cuidando integralmente dos jovens provenientes de várias partes da África, sobretudo do Sudão do Sul e da Somália, através da formação profissional, do oratório e do centro juvenil, e das atividades educativo-pastorais. Também o vi na significativa presença de Tijuana, no México. Naquela fronteira entre o sul e o norte económico do mundo, com a alimentação e a rede de oratórios, respondem às necessidades de centenas de jovens em busca de futuro, acompanham-nos e previnem o perigo da violência e da droga, oferecendo oportunidades educativas. Também na nossa comunidade do “Sacro Cuore” de Roma temos um pequeno, mas dinâmico, centro juvenil, frequentado por jovens universitários e voluntários, que num ambiente oratoriano acolhem jovens migrantes e refugiados de diversas partes do mundo. Poderíamos percorrer, da mesma forma, o mundo inteiro da nossa Família Salesiana e encontrar em toda a parte respostas criativas para as necessidades dos jovens migrantes, uma vez que esta sensibilidade nasce do nosso ADN salesiano. Creio poder afirmar, sem medo de errar, que somos filhos e filhas de um emigrante, que acolheu emigrantes e enviou os seus filhos missionários para cuidar dos emigrantes.
O fenómeno
O fenómeno migratório diz respeito hoje a mais de 1000 milhões de pessoas; trata-se do maior movimento de pessoas de todos os tempos, que se transformou numa realidade estrutural das sociedades contemporâneas e é uma realidade cada vez mais complexa do ponto de vista social, cultural e religioso, exacerbada pela existência da migração irregular. As causas do fenómeno são várias: das assimetrias sociais e económicas planetárias às crises políticas e sociais que se transformam em conflitos armados e perseguições étnicas e religiosas, às migrações por motivos climáticos como a desertificação de várias partes do planeta e também da enorme facilidade e possibilidade de comunicação e mobilidade hoje existentes.
Segundo os dados das Nações Unidas, os migrantes internacionais são hoje 271,6 milhões, cerca de 3,5% da população mundial. Destes, 39 milhões são menores de 18 anos. A emigração interna (a que se verifica no interior de uma nação) era estimada, segundo dados de 2009, em 790 milhões de pessoas.
Capítulo particular e mais dramático é o dos 70,8 milhões de pessoas obrigadas a migrar: 41,3 milhões de migrantes, sobretudo pessoas que devido aos conflitos bélicos, foram obrigadas a migrar no interior do próprio país. Os que abandonam o próprio país são 25,9 milhões de refugiados, mais 3,5 milhões de pessoas que pedem asilo. São dados oficiais da ONU, embora sabendo que os números poderiam ser ainda maiores. Metade desses migrantes forçados são menores de 18 anos. Foram calculados em 111.000 os menores sem família, desacompanhados. Os refugiados vivem sempre cada vez mais nas cidades (61%), permanecendo mais invisíveis.
Dom Bosco
Para a nossa família religiosa, o fenómeno da migração não é uma novidade carismática.
O próprio Dom Bosco emigrou da serenidade e austeridade da zona rural dos Becchi para Chieri, e depois para a controversa cidade de Turim. Desde os inícios, Dom Bosco enfrentou essa realidade. Os primeiros jovens que acolheu no seu oratório eram emigrantes sazonais ou permanentes, provenientes das zonas rurais em busca de trabalho na capital piemontesa; jovens estrangeiros que não falavam italiano nem piemontês. Numa discussão com alguns párocos de Turim que acusavam Dom Bosco de manter os jovens longe de suas paróquias, o santo respondeu que eram todos estrangeiros:
«Porque são quase todos de fora e abandonados pelos pais nesta cidade; ou para aqui vieram à procura de trabalho sem conseguir encontrá-lo. Saboianos, suíços, valdostenses, bielenses, novarenses, lombardos são os que habitualmente frequentam os meus encontros. […] O facto de estar longe da terra, a diferença de língua, a residência incerta e o desconhecimento dos lugares tornam difícil, para não dizer impossível, a ida às paróquias…»33.
A aventura missionária salesiana começa com a atenção aos emigrantes italianos na Argentina. Dom Bosco exortou assim a primeira expedição missionária de 1875:
«Ide, procurai estes nossos irmãos, cuja misé ria ou desventura os levou a terras estrangeiras, e trabalhai para lhes fazer conhecer como é grande a misericórdia daquele Deus, que a eles vos envia para o bem das suas almas».34
A Congregação Salesiana nos tempos do padre Rua e do padre Albera consolidou a atenção aos emigrantes italianos, e também polacos e alemães. Basta pensar no enorme trabalho feito entre os emigrantes; em 1904, só na América, havia 450.000 emigrantes assistidos pelos salesianos.35 Com o padre Rua foi criada também a «Comissão Salesiana para a Emigração», ativa por vários anos. O serviço prestado em favor dos emigrantes foi enorme, tanto para os emigrantes europeus na América, África e Médio Oriente, como na Europa, para os emigrantes que fugiam do Leste Europeu para a Europa Ocidental nos tempos do regime comunista.
Portanto, o fenómeno migratório, de uma maneira ou de outra, sempre esteve presente na nossa história salesiana. O desafio da migração de jovens é hoje muito mais amplo e complexo devido à sua dimensão cultural, social e religiosa, ao seu grande impacto demográfico e aos novos aspetos relacionados com as técnicas de informação, globalização e facilidade de transporte. Diante desta realidade, torna-se mais necessária a pastoral de comunhão (mais inclusiva e integrante) do que a tradicional, étnico-nacional de atenção aos conterrâneos. Também nós nos deparamos com fenómenos novos e dramáticos, como o dos refugiados, dos menores desacompanhados e do tráfico de pessoas. Tudo isto apresenta grandes desafios para a Família Salesiana diante deste novo “continente juvenil” do século XXI.
Visão de futuro
À questão sobre a que jovens dar prioridade hoje no mundo, certamente somos questionados por estes milhões de jovens obrigados a migrar. É uma realidade que, além de ser uma presença de fronteira em situações de emergência, a maioria das obras da Família de Dom Bosco acolhe na sua realidade centenas de milhares de crianças, adolescentes e jovens migrantes de primeira ou segunda geração que se integram serenamente nas nossas comunidades educativas. Este serviço precioso, em geral muito silencioso e discreto, oferece uma ajuda importante aos jovens que migram oferecendo-lhes um abrigo e ajudando-os na efetiva e natural integração na Sociedade civil e, às vezes, na Igreja.
A nossa ação no difícil mundo da mobilidade humana deve ser realizada a partir da nossa identidade carismática:
- Focando-nos em primeiro lugar nas crianças, nos adolescentes e nos jovens, oferecendo-lhes itinerários educativo-pastorais consistentes.
- Mantendo a nossa abordagem educativo-evangelizadora, evitando reduzir-nos a uma ONG. O sujeito da missão é confiado a uma comunidade educativa em comunhão de vida entre consagrados e leigos competentes para esta delicada missão.
- Conservando a “presença educativa” para nos inserirmos o mais possível no espaço geográfico e existencial dos nossos destinatários.
- Sendo educadores e amigos que estão com eles não simplesmente como agentes humanitários, ou fornecedores de serviços, mas como educadores e pastores.
- Visando a “prevenção”, procurando oferecer aos jovens a possibilidade de desenvolver as suas capacidades no próprio contexto cultural, inserindo-se nele com dignidade, sem a necessidade de emigrarem. Todo o jovem tem o direito a não precisar de emigrar.
- Com uma presença cada vez mais coordena da, mais institucional, mais visível e profissional. Trata-se de uma grande oportunidade de intervenção para a Família Salesiana, em que os Grupos podem pôr os próprios dons à disposição da missão. O Voluntariado Salesiano e o Movimento Juvenil Salesiano têm um imenso horizonte de ação com esta Juventude em movimento.
Este continente em movimento interpela-nos intensamente no século XXI propondo-nos uma verdadeira renovação pastoral, carismática e vocacional.
2.6. HONESTOS CIDADÃOS que assumem o cuidado da Casa comum como os jovens nos pedem
O cuidado da Casa comum (visão da ecologia proposta pela Laudato si”) não é apenas mais um compromisso: é um horizonte que questiona por inteiro a nossa cultura, fé, estilo de vida, missão, educação e evangelização. Além disso, a ecologia fala-nos também de uma proposta educativa integral (nos seus valores humanos e espirituais).
Quando falamos do cuidado da Casa comum ou do cuidado da Criação, não estamos perante uma preferência opcional, mas perante uma questão essencial de justiça, dado que a Terra que recebemos pertence também àqueles que virão depois de nós. O ambiente é um empréstimo que cada geração recebe e deve transmitir às gerações seguintes.
Algumas propostas pastorais
Conversão ecológica
A primeira proposta tem muito a ver com a mudança de mentalidade sobre a visão da realidade. O Papa Francisco convida-nos a «tomar dolorosa consciência, ousar transformar em sofrimento pessoal aquilo que acontece ao mundo».36 Por isso, devemos adotar uma espiritualidade radicalmente nova, uma espiritualidade em que o nosso empenho pelo cuidado da Terra seja intenso e eficaz na medida em que se enraíza numa conversão ecológica efetiva.
Somos chamados a ir às raízes éticas e espirituais dos problemas ambientais, que nos convidam a procurar soluções não só servindo-nos das técnicas, mas também transformando-nos como seres humanos. Cada um deve passar do consumo ao sacrifício, da avidez à generosidade, do desperdício à capacidade de compartilhar, do «o que eu quero» ao «do que o mundo de Deus precisa».
Acompanhar o protagonismo juvenil no empenho pela casa comum.
Muito provavelmente o que ninguém poderia ter imaginado, e muito menos os “grandes e poderosos” deste mundo é que a maior reação e protesto pudesse vir dos jovens e num movimento quase mundial. Há no mundo jovens bem preparados sobre as questões ecológicas, que exercem uma cidadania ativa para a salvaguarda da Casa comum.
- Greta Thunberg, jovem ativista sueca de 16 anos, disse aos líderes mundiais reunidos em Nova Iorque para a Cimeira da ONU de 2019 sobre o clima: «Vocês roubaram os meus sonhos e a minha infância com as vossas palavras vazias. Estamos no início de uma extinção em massa e tudo o que vocês dizem anda à volta de dinheiro e de um conto de fadas de crescimento económico eterno. Como se atrevem a tal? Vocês estão em falta connosco. Mas os jovens já começaram a entender a vossa traição».37
- Estas palavras fortes estão a desafiar os líderes e a mudar as perspetivas dos adultos e a guiar um vasto movimento de jovens para salvar a casa comum. A Geração Laudato si” é um exemplo concreto disto. O Movimento Católico Global pelo Clima é uma rede internacional com mais de 800 organizações católicas. Elas estão a mobilizar-se pela justiça climática e a pedir à Igreja e ao mundo que ajam. Os grupos “Don Bosco Green Alliance” e o “Movimento Juvenil Salesiano” representam a Família Salesiana na qualidade de membros ativos desta rede internacional.
- Como educadores dos jovens, acompanhamos não só quem já “calçou os sapatos”, mas também nos ocupamos daqueles que estão “deitados no divã” diante da janela ou do monitor. Ao mesmo tempo, recordamos que os jovens são muito bons a motivar os seus contemporâneos a “calçarem os sapatos”.38
Por uma ecologia humana
A ecologia ambiental leva-nos intrinsecamente a refletir sobre a ecologia integral. A partir dos anos 1970, o Papa S. Paulo VI e os vários Papas que se seguiram no tempo, sempre insistiram neste aspeto. A “ecologia humana” é uma expressão introduzida pelo Papa S. João Paulo II na carta encíclica Centesimus Annus.39
Recuperando esta expressão, o Papa Francisco afirma que «a destruição do ambiente humano é um facto muito grave, porque, por um lado, Deus confiou o mundo ao ser humano e, por outro, a própria vida humana é um dom que deve ser protegido de várias formas de degradação».40
A obra educativa e cultural
- S. João Paulo II, perante a crise ecológica, falava já da necessidade e da urgência41 de uma grande ação educativa e cultural.42
- As nossas propostas educativas para o cuidado da Casa comum preveem as três fases de Informar, Educar e Fazer cultura.43
- Perante o fenómeno do consumismo, é preciso recordar aos jovens três princípios das nossas realidades (3R: reduzir, reutilizar e reciclar).
- Bem sabemos que as temáticas ecológicas são consequência das estruturas injustas. Para enfrentá-las precisamos das estruturas virtuosas da graça, da reconciliação, da cura, e de uma ecologia ambiental, humana, social e integral.44 São estas as estruturas que, como educadores, devemos propor aos jovens.
- Para iniciar itinerários que levem à cidadania ecológica há algumas reflexões fundamentais muito próximas da nossa sensibilidade salesiana. Por exemplo, o nosso irmão Joshtrom Isaac Kureethadam trabalha no Dicastério da Igreja que se ocupa deste aspeto. Encontramos no seu livro «Os Dez Mandamentos Verdes» muitos pontos para continuar a desenvolver nos nossos jovens uma grande sensibilidade pela Criação, para sonhar e fazer com que se torne realidade o que os nossos governantes não querem levar a sério por motivos económicos e interesses variados.
2.7. Na defesa dos Direitos Humanos e especialmente dos Direitos dos Menores
Sinto a urgente necessidade de fazer um vivo apelo à nossa Família para que, no presente e no futuro, possamos distinguir-nos pela defesa de todos os menores. A essência da mensagem que desejo transmitir é exatamente esta:
- A finalidade pela qual fomos suscitados pelo Espírito Santo em Dom Bosco como Família Salesiana é dar toda a nossa vida às crianças, aos jovens e aos adolescentes do mundo, dando prioridade sobretudo aos mais indefesos, aos mais necessitados, aos mais frágeis, aos mais pobres.
- Para isso, temos de ser especialistas no setor da defesa de todos os direitos humanos, especialmente dos menores, e pedir perdão até às lágrimas caso alguém não tivesse agido assim. Não podemos ser cúmplices de nenhum abuso, entendendo com isso o abuso de «poder económico, de consciência, sexual» – como foi definido por ocasião do Sínodo sobre Os jovens, a Fé e o Discernimento Vocacional.45
Como Família de Dom Bosco, participamos em todos os esforços da Igreja inteira em favor dos direitos humanos. Como bem sabemos, a linguagem dos direitos entrou na vida da Igreja com o desenvolvimento da doutrina social. A Igreja, em força do Evangelho que lhe foi confiado, proclama os direitos humanos, reconhece e valoriza muito o dinamismo com que nos nossos dias estes direitos são promovidos em toda a parte.
Enquanto a sociedade civil atua de maneiras diversificadas em defesa dos direitos humanos, nós, Família de Dom Bosco, assim como a Igreja, somos chamados hoje a recuperar a dimensão objetiva dos direitos humanos, baseada no reconhecimento de que a «dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo».46 Sem este horizonte, cria-se um curto-circuito nos direitos e favorece-se «a globalização da indiferença que nasce do egoísmo, fruto de uma conceção do homem incapaz de acolher a verdade e viver uma autêntica dimensão social».47
A tentação moderna é evidenciar a palavra «direitos», abandonando a mais importante: «humanos». Se os direitos perdem o seu nexo com a humanidade, tornam-se apenas expressões de grupos de interesse.
» Para Dom Bosco, o jovem marginalizado não é um beneficiário passivo, um simples destinatário de assistência ou serviços. Dom Bosco deseja uma nova visão do jovem marginalizado: uma relação educativa entre educando e educador, que antecipa a visão do jovem como sujeito de direitos, que a Convenção de Nova Iorque sancionou pela primeira vez há trinta anos, em 20 de novembro de 1989, como instrumento de direito internacional hoje legalmente vinculante para 193 Estados.
» Os direitos dos menores e o Sistema Preventivo têm alguns princípios básicos em comum. Ambos têm o mesmo objetivo, ou seja, o desenvolvimento integral e o bem-estar geral dos menores. Tanto os direitos dos menores quanto o Sistema Preventivo têm algumas tarefas a cumprir para poderem realizar os seus objetivos em favor dos menores. Essas tarefas compreendem o cuidado integral das pessoas, a formação de pessoas responsáveis, a criação de um ambiente sadio, a criação de diretrizes para uma disciplina positiva e a formulação de protocolos para a proteção dos menores.
Em defesa dos direitos dos menores
- De 21 a 24 de fevereiro de 2019 houve a “cimeira” da Conferência Episcopal Católica do mundo sobre «A proteção dos menores na Igreja». Nela participaram 190 líderes eclesiásticos e os presidentes de 140 Conferências Episcopais. Nesse encontro, o Papa Francisco disse que em docilidade ao Espírito Santo, devemos ouvir o grito dos pequenos que pedem justiça. Bem sabemos que cada escândalo pode tornar invisível a luz do Evangelho,48 e o abuso de poder e de consciência fazem muito mal e são perigosíssimos.
- Não podemos falar de direitos dos menores sem fazer referência à Convenção sobre os Direitos da Infância e da Adolescência das Nações Unidas, que define como menor todo o ser humano de idade inferior aos dezoito anos e oferece um modelo estandardizado para o cuidado e a proteção, a identificação, a gestão dos casos, o relatório e a notificação. Identifica quatro aspetos dos direitos dos menores: a participação dos menores nas decisões que lhes dizem respeito; a proteção dos menores contra a discriminação e todas as formas de abandono e abuso; a prevenção dos danos e a assistência aos menores nas suas necessidades fundamentais.
- No nosso Projeto Educativo-Pastoral a escuta dos menores é importante e vital, como muitas vezes sublinhado pelo Sínodo.49 O diálogo abre caminho para a participação plena. E esta participação contribui para o crescimento pessoal, leva a melhores decisões e resultados, serve para proteger os menores, contribui para a preparação e o crescimento da sociedade civil, a tolerância e o respeito pelos outros e fortalece a responsabilidade.
- Conhecimento e reflexão mais aprofundada sobre os direitos dos menores: são muitos os documentos e declarações constantemente publicados sobre os direitos humanos e, de modo especial, sobre os direitos dos menores. Alguns são a nível eclesiástico e geral, outros a nível regional ou com tema específico.50 O desconhecimento destes documentos certamente nos impedirá de ser educadores eficazes. Por isso devemos estudá-los a fundo e difundi-los nas nossas realidades.
- Trabalhar em rede com outras agências: na missão de proteção e promoção dos direitos dos menores, precisamos de trabalhar em rede com muitas outras agências que atuam com “abordagem baseada no direito”. Existem realmente muitas, governativas e não governativas. Nalgumas Províncias do mundo, alguns Salesianos participam no Conselho de Justiça de Menores (Juvenile Justice Board) através do qual são capazes de defender e proteger os direitos dos menores. Outros Salesianos são advogados e defendem os direitos dos menores nos tribunais civis e conseguem justiça para eles. Esta é uma ótima plataforma para difundir os valores evangélicos nos setores seculares.
- O «Sistema de Proteção da Infância» é definido pela UNICEF como «conjunto de leis, políticas, regulamentos e serviços necessários em todos os setores sociais para garantir a prevenção e a resposta aos riscos relacionados com a proteção». Muitas das nossas presenças são inteiramente dedicadas aos serviços sociais e aos centros para jovens em situação de risco. Este deve continuar a ser, como Família Salesiana, o nosso “pequeno, mas grande” contributo.
- É indispensável que haja em cada obra da nossa Família no mundo um «Código de Ética» que defina muito claramente o que se espera de todos, consagrados, consagradas, educadores leigos, estabelecendo claramente também o que constitui uma grave violação do próprio Código de Ética.
- Por fim, tratando-se de um aspeto fundamental enquanto pessoas consagradas, deve ser reforçada a nossa relação pessoal e comunitária com Cristo. A sua companhia deveria inspirar-nos a trabalhar mais para proteger as crianças e os menores que Ele tanto ama e indicou como modelos de discipulado.
O Sistema Preventivo e os Direitos Humanos: duas propostas
Juntos, estamos a fazer muitas coisas boas e belas para a promoção dos direitos humanos. Entretanto, para sermos mais eficazes neste serviço, devemos mudar de estratégia no nosso modo de pensar e agir. Devemos ser a Família de Dom Bosco que garante a dimensão social da caridade51 e promove os direitos humanos mediante o uso criativo do Sistema Preventivo. Estas propostas são necessárias para a mudança de paradigma:
- Passar de ver o Sistema Preventivo simplesmente como alternativa ao Sistema Repressivo, a vê-lo como um excelente instrumento de promoção dos direitos humanos. Habituámo-nos a considerar o Sistema Preventivo apenas como um sistema de educação diferente do Sistema Repressivo. Não demos a atenção necessária ao seu potencial na questão dos direitos humanos. Temos de estudar e elaborar o seu potencial intrínseco para a promoção dos direitos humanos e utilizá-lo para os mesmos.
- Passar da formação da lei que respeita os cidadãos aos direitos reivindicados pelos cidadãos. Sempre enunciámos um dos objetivos da educação como formação de honestos cidadãos e entendemos que isto significa formar cidadãos respeitadores da lei. Isto não será suficiente no futuro num mundo cada vez mais complexo. Devemos educar os jovens para reivindicar os seus direitos; de facto, se os direitos não são reivindicados, é muito provável que sejam ignorados.52
A ÚLTIMA PALAVRA… ESCUTANDO O PRÓPRIO DOM BOSCO A FALAR DE POLÍTICA
Termino este longo texto em que me referi a numerosos aspetos, na minha opinião muito importantes e da máxima atualidade, dando a palavra ao próprio Dom Bosco. Entre as muitas citações possíveis, escolhi o discurso que ele fez aos seus antigos alunos que em 15 de julho de 1883 voltaram ao Oratório para homenagear Dom Bosco. Por incrível que pareça, boa parte do discurso de Dom Bosco refere-se à política. Creio ser muito esclarecedor e em grande sintonia com o que desenvolvi até aqui. Diz assim:
«Além da ajuda do céu, o que nos facilitou e facilitará praticar o bem, é a própria natureza da nossa obra. A finalidade que procuramos torna-a bem-vista por todos os homens, inclusive pelos que em questão de religião não pensam como nós. Se há alguém que nos hostiliza é preciso dizer que não nos conhece ou então que não sabe o que aqui se faz. A instrução civil, a educação moral da juventude abandonada ou em situação de risco, para subtraí-la ao ócio, à má vida, à desonra, talvez mesmo à prisão, é o que a nossa obra visa. Ora, que pessoa sensata, que autoridade civil poderia impedi-la?
Ultimamente, como sabeis, estive em Paris e preguei em diversas igrejas para apresentar a causa das nossas obras e, digamos francamente, para conseguir dinheiro a fim de providenciar pão e sopa para os nossos rapazes que nunca perdem o apetite. Ora, entre os ouvintes havia os que compareciam apenas para conhecer as ideias políticas de Dom Bosco; pois alguns supunham que eu tinha ido a Paris para proclamar uma revolução; outros, para procurar sócios de um partido e assim por diante; de modo que havia pessoas bondosas que realmente temiam que me acontecesse alguma brincadeira de mau gosto. Mas, desde as primeiras palavras, acabaram-se todas as ilusões, caíram todos os temores e Dom Bosco ficou livre para correr a França de uma ponta à outra. De facto, com a nossa obra não fazemos política; nós respeitamos as autoridades constituídas, observamos as leis que é preciso observar, pagamos os impostos e avançamos, pedindo somente que nos deixem fazer o bem à juventude pobre e salvar almas. Se se quiser, nós também fazemos política, mas de modo totalmente inocente, antes, vantajoso para todos os governos.
A política define-se como a ciência e a arte de bem governar o Estado. Ora, a Obra dos Oratórios na Itália, na França, na Espanha, na América, em todos os países onde já se estabeleceu, dedicando-se especialmente a fazer o bem à juventude mais necessitada, tende a diminuir o número dos maus e vagabundos, dos pequenos malfeitores e pequenos ladrões, a esvaziar as prisões, numa palavra, tende a formar bons cidadãos que, longe de dar problemas às autoridades públicas, são de apoio para elas, a fim de manter na sociedade a ordem, a tranquilidade, a paz.
Esta é a nossa política; somente desta nos ocupámos até agora, desta nos ocuparemos no futuro».53
Com a mediação materna de nossa Mãe, Imaculada e Auxiliadora, peçamos a Deus Pai que nos conceda o seu Espírito para continuar a fazer a verdadeira política do Pai Nosso pelos jovens de hoje, numa sociedade que, perante as suas desigualdades nos exorta a não ficar calados ou passivos e, num mundo cada vez mais carente de Deus, devemos ser cada vez mais Testemunhas-Discípulos-Missionários do Deus que, respeitando tão escrupulosamente a liberdade humana, está sempre disposto ao Encontro com os seus filhos e as suas filhas.
Para isso, rezemos:
Senhor Jesus,
sabes quanto nos custa pôr em prática o teu Evangelho;
ajuda-nos a contemplar-te em Dom Bosco,
a ver o teu amor em seus gestos,
a discernir o teu caminho em suas ações,
a aprender a tua misericórdia em seu carinho.
Ilumina-nos para interiorizar o estilo com que
Dom Bosco foi teu discípulo,
modela o nosso coração como o teu de bom pastor,
e dá-nos força para converter as tuas palavras
em vida e em obras. 54
Pe. Ángel Fernández Artime, SDB
Reitor-Mor
Notas de rodapé
1 O comentário que desenvolvo e que fará referência ao binómio “Bons Cristãos e Honestos Cidadãos”, salesiano justamente porque segundo o coração de Dom Bosco, foi amplamente estudado e aprofundado por Pedro Braido, Buoni cristiani ed onesti cittadini, RSS, vol. 24, 1994 (p. 36-42)
2 Redemptoris Missio, 2.
3 Constituições e Regulamentos SDB, 21.
4 Sínodo dos Bispos, Os Jovens, a Fé e o Discernimento vocacional. Instrumentum Laboris, 175.
5 Constituições dos SDB 21, citando o Padre Rua 24.8.1894.
6 Constituições dos SDB 38.
7 Francisco, Christus Vivit, 214.
8 Francisco, Evangelii Gaudium, 82.
9 Francisco, Christus vivit, 84.
10 Ibid., 67.
11 Francisco, Angelus de 28 de outubro de 2019.
12 Cf. Francisco, EG, 239-288.
13 Cf. Francisco, LS, 181-213.
14 Cf. Francisco, AL, 278-289.
15 Cf. Francisco, GE em grande parte do seu conteúdo.
16 Francisco, ChV, 159.
17 Ibid., 177
18 Sínodo dos Bispos, Os Jovens, a Fé e o Discernimento Vocacional, o.c., 55
19 Francisco, EG, 250.
20 Ibid., 110.
21 Ibid., 273.
22 Francisco, ChV, 164.
23 Ibid., 252.
24 Francisco, ChV, 174.
25 P. Chávez, Atos do Congresso Internacional sobre o Sistema Preventivo e os Direitos Humanos, p. 82.
26 Dom Oscar Romero, Discurso pronunciado por ocasião do Doutoramento Honoris Causa que lhe foi conferido pela Universidade de Lovaina, feito em 2 de fevereiro de 1980.
27 Francisco, Vídeo-mensagem enviada à TED em Vancouver, 27 de abril de 2017.
28 Cf. Constituições e Regulamentos SDB, 32 e 22 respetivamente.
29 P. Chávez, Como Dom Bosco educador, ACG 415.
30 Dicastério para a Pastoral Juvenil Salesiana, A Pastoral Juvenil Salesiana. Quadro Referencial, p. 99, referindo-se ao CG23, n. 178.
31 Francisco, Audiência aos Funcionários do Tribunal de Contas,
Cidade do Vaticano, 18 de março 2019.
32 Dicastério para a Pastoral Juvenil Salesiana, o.c., 85.
33 BOSCO J., Memórias do Oratório, Edições Salesianas, Porto, 2012, 140.
34 CERIA E., Memórias Biográficas do Beato Dom Bosco, Vol. XI, Turim 1930, 385.
35 MOTTO F., Bosco (Don) Giovanni e la missione dei Salesiani per i migranti, in, BATTISTELLA G. (a cura di). Migrazioni. Dizionario Socio-Pastorale, Cinisello Balsamo (Milão) 2010, 62.
36 Francisco, LS, 19.
37 Cf. https://news.un.org/pt/story/2019/09/1688042.
38 Cf. Francisco, Discurso aos jovens por ocasião da viagem apostólica ao Chile, 17 de janeiro de 2018.
39 Joshtrom Isaac Kureethadam, I dieci comandamenti verdi. Turim: Elledici, 2016, 142.
40 Francisco, LS, 5.
41 João Paulo II, Centesimus Annus, 36.
42 Aldo Coda Negozio, Guglielmo Aldo Ellena, Gestire il pianeta terra, Turim: Società editrice internazionale, 1995, p. XI.
43 Tebaldo Vinciguerra, “Ecologia”, Note di pastorale giovanile, p.74.
44 Sínodo dos Bispos, o.c. Documento Final, 30.
45 Sínodo dos Bispos, o.c. Documento Final, 30.
46 Declaração Universal dos Direitos do Homem, 10 de dezembro de 1943, preâmbulo. Cf. https://nacoesunidas.org/wp-content/ uploads/2018/10/DUDH.pdf.
47 Francisco, Discurso ao Conselho da Europa, Estrasburgo, 25 de novembro de 2014.
48 Bento XVI, Carta Pastoral do Santo Padre aos Católicos da Irlanda, 19 março de 2010.
49 Sínodo dos Bispos, Os Jovens…, o.c., 6.
50 Francisco, Motu Proprio Sobre a proteção dos menores e das pessoas vulneráveis, 26 de março de 2019; Council of the Baltic Sea States Secretariat, Guidelines: promoting the human rights and the best interests of the child in transnational child protection cases, Suécia: 2015; Rachel Hodgkin and Peter Newell, Implementation Handbook for the Convention on the Rights of the Child, UNICEF, 2007.
51 GC23, 204, 209, 212.
52 Jose Kuttianimattathil, “Don Bosco”s Educative Method and the tenets of the Universal Declaration of Human Rights, in Charles Maria, Pallithanam Thomas, Dörrich Hans-Jürgen, Reifeld Helmut; in Defence of the Young, Nova Déli, 2010.
53 ISS, Fontes Salesianas. Dom Bosco e a sua obra. Edebê, Brasília, 2015, 169.
54 Xabier Matoses, Espírito Salesiano, in J. José Bartolomé (ed.), Luz para meus passos. Edebê, Brasília, 2017, p.34.