Porque não ficou Dom Bosco como pároco em Castelnuovo ou precetor em Génova? Viu jovens na prisão; dignidade por terra; rostos em espelho partido.
Porque não ficou Dom Bosco como pároco em Castelnuovo ou precetor em Génova? Viu jovens na prisão; dignidade por terra; rostos em espelho partido.
Pensou: caminhos sem prisão; profissionalizar; homens com rosto lavado; responder à questão operária.
Tomei conhecimento, pelo diretor do Boletim Salesiano, do discurso da Ministra da Justiça, em encontro de Pastoral Penitenciária, perante D. Joaquim Mendes, Bispo Auxiliar de Lisboa, e o Pe. João Gonçalves [coordenador nacional da Pastoral Penitenciária]. Mostrou desejo de ver os detidos «apenas como homens e mulheres como nós,… de lhes estender a mão com energia e força genuinamente fraterna…».
Humanismo de Dom Bosco, para evitar as prisões. Imaginei: parece que a senhora Ministra passou no Valdocco de Dom Bosco, ou na Santa Marta de Francisco.
A ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, discursou no XII Encontro Nacional da Pastoral Penitenciária, iniciativa promovida pela Igreja Católica, em Fátima, que teve como tema ‘Este é o tempo da Misericórdia’. O encontro decorreu nos dias 20 e 21 de janeiro no Hotel Santo Amaro, inspirando-se na nova Carta Apostólica do Papa Francisco, ‘Misericordia et misera’, publicada após o final do Jubileu da Misericórdia, com a presença do Bispo Auxiliar de Lisboa, D. Joaquim Mendes, que acompanha o setor, enquanto vogal da Comissão Episcopal da Pastoral Social e Mobilidade Humana; e de Celso Manata, diretor-geral da Reinserção e Serviços Prisionais.
INTERVENÇÃO DA SENHORA MINISTRA DA JUSTIÇA NO XII ENCONTRO NACIONAL DA PASTORAL PENITENCIÁRIA
FRANCISCA VAN DUNEM
FÁTIMA, 21 JAN 2017
«As minhas primeiras palavras são para dizer quanto me tocou e honrou este convite da Pastoral das Prisões.
Estar hoje entre vós, é um genuíno privilégio que agradeço ao senhor padre João Gonçalves, sentidamente.
Primeiro Cesare Bonesana, o Marquês de Beccaria, autor de “Dos delitos e Das penas” e depois John Howard, autor de “Estado das Prisões na Inglaterra e País de Gales” lançaram, na segunda metade do século XVIII, ao transitarem pelos calabouços da Europa, os fundamentos da reforma de um jus puniendi humanista moderno.
Um direito de punir que repudiava definitivamente as penas desumanas, como a pena de morte. A pena de morte assumia, então, uma centralidade punitiva na sua forma mais cruel: a forca, a fogueira, o estrangulamento, só para nomear algumas das variantes mais marcantes da história das penas.
Refira-se, aliás, de passagem, que na segunda metade do século XVIII, a prisão servia quase exclusivamente para conservar os suspeitos até ao final do julgamento e os condenados até à execução da pena de morte.
Poucas realidades revelam melhor a crueldade dos homens, do que história do jus puniendi, por vezes mais do que a própria história da violência da criminalidade ao longo dos tempos.
A partir dos finais do século XVIII, e em consequência de todo o lastro iluminista, as constituições dos estados europeus foram consagrando um conjunto de princípios que estabeleceram os contornos do direito de punir moderno, de que eu destacaria, nesta ocasião, a legalidade, a intervenção mínima, a humanidade e a pessoalidade.
Estes princípios projetam-se no direito penitenciário, ainda que em alguns contextos tenhamos dificuldade em transpor o fosso que separa o direito penitenciário legislado da sua aplicação efetiva nas prisões, como assinalava o Professor Beleza dos Santos, ilustre penalista, no início do século passado.
É sabido que temos um sistema prisional em esforço. E esse esforço é tanto mais sentido quanto maiores são os constrangimentos financeiros com que um País se debate. Esses constrangimentos – que existiram e continuam a existir –, afetando o Estado e as famílias, geraram uma simbiose de fragilidades profundamente debilitante, que conduziu a mais miséria, a mais privação de emprego e, em alguns casos, ao desespero, caldo de cultura que pode potenciar a passagem para experiências criminosas.
Mas a verdade é que, independentemente desse fator, as estatísticas prisionais apontam consistentemente no sentido de que nos últimos quinze anos, a capacidade de alojamento do sistema prisional português foi sempre inferior às respostas exigidas pelo sentencing e que Portugal tem uma taxa de encarceramento muito elevada para os padrões médios da União Europeia.
O nosso parque penitenciário é vetusto e necessita de intervenções urgentes. No vasto conjunto edificado de 49 estabelecimentos prisionais ainda se utilizam edifícios construídos no século XIX, como a cadeia de Ponta Delgada e o Estabelecimento Prisional de Lisboa.
Temos dificuldades de resposta sistémicas no plano da saúde, da formação profissional e da empregabilidade dos reclusos.
Mas temos vindo a enfrentar essas dificuldades com determinação.
Dentro e fora dos muros da cadeia, o trabalho tem um papel insubstituível na valorização pessoal do condenado. Mas também os cuidados de saúde, a educação, o lazer, o desporto, a cultura e a assistência religiosa integram o núcleo básico essencial ao reforço positivo do tratamento penitenciário.
A missão do Estado é aí central porque é dele a primeira responsabilidade de assegurar aos reclusos uma existência digna, tanto no plano material como no espiritual e de zelar pela criação de condições que os capacitem e reforcem para enfrentar o tempo do retorno à liberdade.
E dessa convicção decorre a exigência de pôr em prática um conjunto de políticas que passam pela implementação de um plano criterioso de melhorias nas condições materiais dos estabelecimentos prisionais e centros educativos;
por medidas de política criminal destinadas a combater a sobrelotação das prisões e a aprofundar o recurso a penas alternativas, não privativas da liberdade;
por um maior investimento no trabalho e na formação profissional em meio prisional e no acompanhamento dos reclusos nos primeiros tempos de regresso à liberdade;
pela formação e pela criação de condições de trabalho justas para quem tem a seu cargo a responsabilidade imediata da guarda dos reclusos, os dirigentes e os membros da guarda prisional. Que coabitam a clausura e a quem se exige, a um tempo, o cumprimento da disciplina prisional e a manutenção da segurança nos espaços prisionais, a par de elevados padrões de respeito pelos direitos humanos, sentido de humanidade e temperança.
Como enfatizou Sua Santidade o Papa Francisco, em visita à Prisão de Pasmasola, na Bolívia, a reclusão não é o mesmo que a exclusão, porque a reclusão forma parte de um processo de reinserção na sociedade.
Senhor D. Joaquim Mendes,
Senhor padre João Gonçalves
Caros membros desta comunidade de religião e ação,
O tema deste encontro, “Este é o tempo da Misericórdia”, é como um raio de sol, perfurando a mais inclemente das tempestades.
Porque as incertezas que hoje pairam sobre as nossas vidas e o nosso futuro coletivo, tendem a fazer recear que se estejam a formar os elementos que reunidos fazem a tempestade, com toda a sua impiedade, toda a sua insensibilidade e neutralidade na escolha dos alvos e na repartição da dor.
E fazem temer tudo o que os tempos de tempestade coenvolvem de ensimesmamento da generosidade, de desconhecimento da alteridade, de gestação de egoísmos de todos os matizes.
Vê-los aqui, reunidos em torno deste tema, no quadro desta missão, é uma luz que resplandece; a esperança que transborda.
Sou, como sabem – porque é público – magistrada de profissão.
Fiz carreira como magistrada do Ministério Público e nessa qualidade desempenhei múltiplos cargos. Fui responsável direta pela intervenção processual, em áreas diferentes, em particular na área criminal.
Exerci cargos de direção de unidades, algumas delas com responsabilidades exclusivas na direção de inquéritos criminais, como o DIAP de Lisboa.
Ao fim de 35 anos de carreira no Ministério Público, em 2013, decidi mudar de carreira e passar a juiz.
Nesse ano concorri ao Supremo Tribunal de Justiça.
Submeti-me a um concurso. Fiz provas públicas. Ao fim de quase um ano, no dia do meu aniversário, 5 de Novembro de 2014, foi publicado o resultado do concurso.
Mas quando pela ordem normal das coisas iria iniciar funções no Supremo Tribunal de Justiça, em março de 2016, estava já no governo.
Tomei posse de categoria, mas não de exercício. Mantive-me no Ministério da Justiça.
Mas a verdade é que não fora esta minha passagem pelo Governo estaria no Supremo Tribunal de Justiça, uma vez mais a trabalhar em crime.
A decidir e a participar na decisão de recursos de processos criminais, o que significa, a decidir sobre a liberdade de outras mulheres e homens.
De facto, a minha aproximação ao crime, às disciplinas jurídicas que lidam com o crime iniciou-se na faculdade de direito, nos idos de 77, quando fui monitora de direito e de processo penal.
Depois, como magistrada, trabalhei maioritariamente no crime, ao lado da investigação criminal e da perseguição penal.
E desse lado vi nascer e desenvolver-se carreiras criminais, assim como me cruzei com gente que escorregou acidentalmente e caiu nas margens;
encontrei quem identificasse no crime a autoestrada para a partilha dos modelos de sucesso para que apelam as nossas sociedades;
vi passar por mim os condenados, os renegados da terra; os filhos da exclusão e os alienados do poder e da ostentação;
vi homens e mulheres produto da coligação do desamor com o abandono, possuídos de desorientação e desespero;
vi o ódio e a crueldade gratuitos;
cruzei-me com gente ferida por experiências extremas, predisposta a devolver ao mundo todo o mal que este lhe infligira.
Foi um processo contínuo de conhecimento, de aprendizagem, de aproximação aos limites da condição humana.
Trabalhei no rigor da lei, no esclarecimento dos factos, com profundo respeito processual e consideração humana pelos justiciáveis e suas vítimas, cumprindo uma função do Estado.
Mas trabalhei muitas vezes com nomes que nada diziam de rostos, que não traziam a rota integral dos percursos de quem os carregava e com a dimensão penetrante de que, naquele momento, não estavam em avaliação as raízes dos males do mundo.
Este curto percurso como Ministra da Justiça favoreceu-me o encontro com a última estação a que estavam destinados alguns daqueles com que me cruzei enquanto magistrada.
Deu-me uma aproximação mais crua à realidade da privação da liberdade. De seres humanos, mulheres e homens, com percursos de vida interrompidos, como espelhos estilhaçados e que, amiúde se ferem e sangram na tentativa de identificar o pedaço com que reconstituirão o reflexo que lhes permitirá perscrutar um futuro para lá da nuvem de incerteza que se fixou no quotidiano de uma existência condicionada, como que inacabada.
O confronto com a nossa humanidade, com a nossa capacidade de nos revermos no outro, faz-se no encontro com essas pessoas. Com a capacidade que temos, ou não, de olhar sem os julgar. De os ver apenas como homens e mulheres como nós, com a soma das mil contradições que a fragilidade da nossa condição humana alberga. De fazer um exercício de superação das fronteiras invisíveis que nos separam. De lhes estender a mão, com energia e força genuinamente fraternas, sem interposição da imagem dos atos que os lançaram para o presídio.
De nos concentrarmos na deliberação de criar condições de verdadeira reinserção. Condições que os tornem aptos a retomar a vida em liberdade num quadro de opções dignas e que debilitem o risco de reincidência.
Senhor D. Joaquim Mendes,
Senhor padre João Gonçalves,
Senhoras e senhores membros desta comunidade de religião e ação,
O sistema prisional que temos é também o espelho da sociedade que somos, qualificando-nos, ou não, como homens, na responsabilidade solidária que a dimensão da vida coletiva necessariamente encerra.
Não podemos celebrar-nos como uma sociedade de escolhas se não formos capazes de assegurar a essas mulheres e homens que o Estado legitimamente privou de liberdade, condições de vida dignas nesses espaços de clausura.
E constitui obrigação do Estado assegurar os meios que tornem efetiva a quebra do ciclo que as levou ao crime, tornando-as mais aptas para a justiça, mais abertas à compaixão e ajudando-as a reconfigurar as suas vidas no futuro, recompondo cada peça do espelho que se estilhaçou.
Não temos ilusões a respeito da capacidade de levarmos a cabo sozinhos esta experiência quase transcendente.
Somos todos poucos para levar por diante esta magna obra e por isso mesmo o Ministério da Justiça não pode dispensar o contributo inestimável e samaritano dos capelães, dos visitadores e dos voluntários, que se dedicam a manter viva a esperança do Evangelho da Misericórdia nas prisões.
Permitam-me que me dirija agora aos Senhores voluntários!
Senhores voluntários,
Sei como a vossa tão intensa generosidade ilumina de esperança a vida de tantas mulheres e homens.
Dar de si próprio. É o mais difícil que há. Tirar de si, o que se tem de tempo, de energia, de espaço de lazer.
Sair da retórica e dos discursos que preenchem o espaço da opinião e passar à ação é o que distingue os que fazem a diferença dos que a apregoam.
Mais importante do que pensar bem, do que expressar corretamente as ideias, ter o dom da palavra ou o domínio de técnicas de oratória é Agir Bem.
É fazer o que é certo e não o que está errado, mesmo quando antevemos que isso tenha um custo elevado, no plano do desgaste físico ou do julgamento de certa opinião ou de opiniões.
É no Bem Agir que reside toda a misericórdia e toda a compaixão. É na consciência do agir bem que nos erguemos depois de todas as contrariedades, que encontramos a redenção de toda a dor.
A vida ensina-nos que é fácil ser compassivos com os nossos. A grande dificuldade reside na partilha dos sentimentos de com dor ou com paixão com terceiros.
Para vós não há desconhecidos nem “nossos e vossos”. Todos são vossos para a solidariedade pura, espontânea e ativa.
A vossa é a maior das magnanimidades e as palavras não podem traduzir o sentido do meu reconhecimento.
Senhor D. Joaquim Mendes,
Senhor padre João Gonçalves,
Enquanto responsável pela pasta da Justiça e pelo sistema penitenciário português, a minha presença neste XII Encontro Nacional da Pastoral Penitenciária constituiu uma oportunidade irrecusável de estar convosco hoje, assinalando a indispensabilidade da vossa ação na assistência religiosa e na reintegração social dos nossos concidadãos privados da liberdade, dando, assim, resposta ao apelo lançado por Sua Santidade o Papa Francisco no ano de 2016 instando-nos a pensar “as prisões” enquanto “lugares de reeducação e reinserção social” e exortando-nos a ajudar a “abrir a porta para o futuro” e a “refazer a sua vida” a “quem sofreu a angústia da queda”.
Não sei quanto; não sei a medida em que a minha ação contribuirá para esse resultado. Só posso afiançar-lhes a minha firme determinação de estar presente e de pôr todas as minhas capacidades ao serviço desta ideia comum, deste ideal partilhado de assegurar àqueles que o Estado privou de liberdade, condições de existência dignas devolvendo-lhes o sentido de uma comunidade coesa e solidária que cuida dos seus membros, nadesgraça como na bem-aventurança.