Recebeu de Dom Bosco o “fogo interior” e a coragem de ousar o impensável. Chefiou a primeira expedição missionária para a Argentina e foi o primeiro bispo e cardeal salesiano.
1 de novembro de 1851. Dom Bosco chega à sua terra, Castelnuovo d’Asti, para a pregação solene. Entre os acólitos havia um rapazinho que ficou encantado a olhar para ele durante toda a pregação. Regressados à sacristia, Dom Bosco viu que o pequeno acólito continuava a olhar para ele em silêncio. Chamou-o e perguntou-lhe: «Queres dizer-me alguma coisa?». «Sim, senhor. Quero ir para Turim consigo para estudar e ser padre». «Bem. Então diz à tua mãe que depois da ceia venha a casa do pároco».
Aquele rapaz chamava-se João Cagliero, e era órfão de pai. A mãe veio com João depois da ceia: «Então – gracejou Dom Bosco – é verdade, Teresa, que quer vender-me o seu filho?». «Ah não!», respondeu a senhora a rir. «Aqui vendem-se os vitelinhos. Os rapazes oferecem-se». «Melhor ainda. Prepare-lhe um pequeno enxoval, e amanhã levo-o comigo».
«A dormir no cesto do pão»
Fizeram o longo caminho a pé. O João na prática fê-lo duas vezes, porque enquanto falava com Dom Bosco corria e saltava à sua frente. Recordará: «Durante aquela viagem Dom Bosco fez-me mil e uma perguntas, e eu dei-lhe mil e uma respostas. Desde aquele momento, nunca mais tive qualquer segredo para ele. Ao ouvir as minhas malandrices, dizia-me a brincar que agora tinha de ser melhor. Finalmente chegámos a Turim. Estávamos cansados. Dom Bosco apresentou-me Mãe Margarida dizendo: “Mãe, trouxe-te um rapazinho de Castelnuovo”. Margarida respondeu: “Claro, tu não fazes outra coisa senão buscar rapazes, e eu já não sei onde os meter”. “Este é tão pequeno que vamos pô-lo a dormir no cesto das baguetes”. Mãe Margarida desatou a rir e procurou um lugar. De facto, não havia um cantinho livre, e naquela aquela noite tive de dormir aos pés da cama de um companheiro.
No dia seguinte vi quanta pobreza havia naquela casa. Os nossos dormitórios, no rés-do-chão, eram apertados, e tinham por pavimento uma calçada de pedras da rua. Na cozinha havia poucas tigelas de estanho com as respetivas colheres. Garfos, facas, guardanapos vê-los-emos muitos anos depois. O refeitório era um alpendre. Dom Bosco servia-nos ao almoço, ajudava-nos a ter em ordem o dormitório, limpava e remendava a nossa roupa, e prestava todos os mais humildes serviços. Fazíamos vida comum em tudo. Mais do que num colégio, sentíamo-nos numa família, sob a direção de um pai que nos queria bem, que só se preocupava com o nosso bem espiritual e material».
João Cagliero mostrou desde os primeiros anos vivo engenho e bom humor. Tinha uma vontade de jogar que extravasava. Miguel Rua continuava a viver com sua mãe, mas de manhã ficava como chefe do pequeno grupo de estudantes, e juntos iam à escola. Por encargo de Dom Bosco, Rua devia fazer de “assistente”, cuidar de que ninguém faltasse às aulas. Raramente Miguel conseguiu “pôr a rédea” a Cagliero. Mal saíam do Oratório, João metia-se por outro caminho, a correr chegava a Porta Palazzo e parava encantado diante dos charlatães. Depois, regressava, sempre a correr, para a escola. Quando os outros chegavam, já ele estava à porta, a transpirar, mas feliz.
«Chamar-nos-emos salesianos»
26 de janeiro de 1854. Dom Bosco fez um discurso estranho a quatro dos seus rapazes: «Vedes que Dom faz o que pode, mas está só. Mas, se vós me derdes uma mão, juntos faremos milagres de bem. Milhares de rapazes pobres estão à nossa espera. Prometo-vos que Nossa Senhora nos mandará oratórios vastos e espaçosos, igrejas, casas, escolas, oficinas, e muitos padres prontos a dar-nos uma mão. Isto na Itália, na Europa e também na América. Já estou a ver entre vós uma mitra episcopal…». Os quatro olharam-se de frente maravilhados. Mas Dom Bosco não estava a brincar, estava sério e parecia ler no futuro: «Nossa Senhora quer que demos início a uma sociedade. Pensei muito que nome dar-lhe. Decidi que nos chamaremos Salesianos». Entre aqueles quatro estavam as pedras fundamentais da Congregação Salesiana.
“Irás para longe, longe”
João Cagliero, 16 anos, uma noite de fins de agosto, ao regressar sentiu-se mal. Dois médicos, chamados de urgência, declararam que o caso era grave. Um golpe duríssimo para Dom Bosco. Mas, quando chegou para lhe dar o Viático, Dom Bosco parou como se visse alguma coisa que os outros não podiam ver. Depois avançou em direção ao leito do doente, mas estava alegre e a sorrir. João murmurou: «É a minha última confissão? Vou mesmo morrer?». Dom Bosco respondeu com voz segura: «Nada disso. Lá em cima ainda não te querem. Tens muito que fazer: vais curar, serás sacerdote… e depois… e depois com o teu breviário debaixo do braço irás para longe, longe». No dia seguinte, Cagliero estava curado.
Todos queriam saber o que é que Dom Bosco tinha “visto” ao entrar no quarto. A resposta deu-a Dom Bosco mesmo, mais tarde: «Pareceu-me que as paredes do quarto se abriam e se prolongavam em horizontes longínquos e misteriosos. Em torno do leito apareceu uma multidão de índios de estatura gigantesca. Dois daqueles gigantes de rosto feroz e triste curvaram-se sobre o enfermo, e apreensivos puseram-se a bichanar: «Se ele morrer, quem virá em nossa ajuda?».
O momento decisivo foi na noite de 9 de dezembro. Dom Bosco reuniu os seus jovensíssimos “salesianos” e perguntou-lhes se queriam constituir uma verdadeira e própria Congregação religiosa, mesmo com votos de pobreza, castidade e obediência. Ouviu-se um murmúrio: «Dom Bosco quer-nos fazer frades!». Cagliero media a passos largos o pátio dominado por sentimentos contraditórios. Depois deu um grande murro na parede dizendo: «Frade ou não frade, eu fico com Dom Bosco».
Cagliero fez os votos trienais em 14 de maio de 1862, os perpétuos, já sacerdote, em 15 de novembro de 1865.
Era o ídolo dos rapazes. Temperamento exuberante, muito impulsivo, sentia e comunicava aos outros a alegria de viver com Dom Bosco: trabalhar, correr, doar-se. Muitas vezes, os rapazes, depois da “boa-noite” de Dom Bosco, aproximavam-se do padre Cagliero a cumprimentá-lo com afeto espontâneo.
Entretanto João Cagliero aperfeiçoava os seus dotes musicais. Celebrações na igreja, academias, banda de música, fizeram dele um precoce e genial compositor. Duas das suas obras, Il figlio dell’esule e Lo Spazzacamino, foram elogiadas por Giuseppe Verdi pela sua música bela e comovente. A Missa de requiem a três vozes foi considerada “joia de fé e de harmonia”. O seu mestre Cerrutti quis que fosse executada na Capela Real no funeral de Carlos Alberto.
Também nisto era um vulcão: no dia 9 de junho de 1868, a Missa da consagração da basílica de Maria Auxiliadora foi cantada por três coros: um a duas vozes de rapazes colocados na cornija da cúpula, e dois coros a três vozes viris sob a cúpula e na tribuna.
Como chefe da primeira expedição missionária
O nome de Dom Bosco tinha cruzado o oceano e começava a ser bastante conhecido na Argentina, onde havia muitos emigrantes italianos.
No mês de março de 1875, Dom Bosco, um dia, após uma pausa de meditação e de silêncio, disse a João Cagliero, que estava a seu lado: «Queria enviar algum dos nossos primeiros padres a acompanhar os Missionários para a América e que ficasse com eles uns três meses, até que estejam bem ambientados. Deixá-los logo sozinhos, sem um apoio, um conselheiro no qual tenham confiança, parece-me uma coisa um pouco dura. Dói-me o coração de pensar nisso». João Cagliero conhecia-o bem demais para compreender o verdadeiro significado daquelas palavras e disse: «Se Dom Bosco não encontrar ninguém mais e me julgar capaz de o fazer, eu estou pronto». «Está bem», concluiu o Santo. Alguns meses depois, de repente, em tom paterno e diplomático, Dom Bosco perguntou ao padre Cagliero: «Quanto a ir para a América, continuas a pensar da mesma maneira? Disseste talvez por brincadeira que irias?». «Sabe bem que com Dom Bosco nunca brinco». «Está bem. Prepara-te. É tempo».
No dia 11 de novembro, Dom Bosco acompanhou os missionários até Génova. Estava profundamente comovido. Alegre e dinâmico, chefe da já próxima expedição dos 10 Salesianos destinados à Argentina, o padre Cagliero com atividades, alegria e bondade não se limitou a “acompanhar” os que partiam. Inteligente, com autoridade e boas iniciativas, depressa conquistou a estima e a benevolência de todos. Alargou logo o plano de ação, dando início na capital a uma escola profissional e a uma obra no bairro de má reputação “La Boca” e idealizando um colégio em Montevideu. A sua missão em Buenos Aires seria de três meses ou pouco mais, mas viu-se obrigado a adiar por dois anos a partida.
Cânticos de glória sobre o Oratório
Sete de dezembro de 1884. O belo templo de Maria Auxiliadora ressoa de cânticos litúrgicos. Com o sagrado e solene rito, o cardeal arcebispo Gaetano Alimonda consagra bispo titular de Magida o padre João Cagliero.
Duas particularidades. No fim da grandiosa cerimónia, o jovem bispo saiu do cortejo e dirigiu-se para a sua mãe. A velhinha (80 anos) veio ao seu encontro ajudada por um filho e por um neto. Dom Cagliero apertou ao peito a cabeça branca, e no meio da comoção geral acompanhou-a com delicadeza para que se sentasse. A caminho da sacristia, misturado no meio da multidão, esperava por ele Dom Bosco de barrete na mão. O bispo correu e apertou-o num abraço vigoroso. Tinha mantido escondida a mão com o anel episcopal entre as pregas dos paramentos. O primeiro beijo pertencia por direito ao «seu» Dom Bosco.
Dom Cagliero, em 22 de dezembro, foi recebido em audiência particular pelo Papa, que lhe disse: «Ide e fazei-me cristã a Patagónia; montai as tendas naquelas longínquas Repúblicas da América do Sul». Para o enérgico e apaixonado bispo salesiano era uma ordem. Percorreu a cavalo e em carroças aos solavancos a sua imensa diocese, desafiando cheias dos rios, inundações e perigosos precipícios dos Andes para visitar também as aldeias mais recônditas e inacessíveis.
Voltou à Itália em 1904, participou nos grandes eventos da diplomacia pontifícia e, em 21 de julho 1915, o Papa Bento XV nomeou-o cardeal.
Havia uma sede episcopal que ninguém ambicionava, Frascati. O cardeal Cagliero ofereceu-se logo: «Sou velho, (tinha quase 83 anos), mas trata-se de trabalhar pela Igreja, não me recuso».
A diocese, embora pequena, era difícil. Um dia, tendo convidado a sua casa um cardeal estrangeiro, deu-lhe a beber vinho de Frascati. Aquele cardeal achou-o muito bom e bebeu outro copo dizendo: «Bom! Bom!». O cardeal Cagliero com o seu bom humor concluiu: «É o meu melhor diocesano!». Com o seu incrível dinamismo pôs em ordem quase tudo.
Em 1925 celebrou-se o primeiro cinquentenário da Primeira Expedição Missionária. O cardeal Cagliero era o último sobrevivente daquele corajoso grupo de pioneiros. Em Turim benzeu os Crucifixos de 172 Salesianos e de 52 Filhas de Maria Auxiliadora que iam para as missões.
No ano seguinte, a 28 de fevereiro, terminava serenamente a sua longa, benéfica e laboriosa jornada.
Fotografias: Boletim Salesiano Itália