Na Argentina foi o «Dom Bosco dos pobres». Quando chegava um rapazinho com fome e andrajoso, perguntava à Irmã: «Tem uma sopa quente e um fato para um Jesus de dez anos?». Artémides Zatti morreu a 15 de março de 1951. João Paulo II beatificou-o a 14 de abril de 2002. No dia 9 de abril, o Papa Francisco promulgou o decreto sobre o milagre que lhe é atribuído. A canonização foi anunciada no Consistório Público Ordinário, em agosto. Será a 9 de outubro próximo.
Dom Bosco partiu para Deus em 1888. Um ano depois, em Boretto de Reggio Emília, um rapazinho de 9 anos começa a trabalhar. Não sabe quem é Dom Bosco, mas um dia, na Argentina, chamar-lhe-ão o «Dom Bosco dos pobres». E agora, sem saber, renova a dura experiência de Joãozinho Bosco na granja dos Moglia. Faz de criado numa vasta herdade agrícola. Levantar às três da manhã, uma fatia de polenta para mastigar e acabar de acordar, e depois toca para o campo. «Criado de lavoura» até aos 16 anos, a trabalhar de sol a sol, de rosto comprido e magro, com medo de acabar como tantos outros operários agrícolas por volta dos 20 anos, vítimas da pelagra ou da malária.
Aquele rapaz chama-se Artémides Zatti e, quando volta para casa, ouve o pai e a mãe falarem em emigrar para a América. Tem um tio emigrante em Baía Blanca, na Argentina, que escreve a dizer que ali quem tem vontade de trabalhar pode viver bem. Na Itália, ao invés, naqueles anos, um assalariado rural tem poucas possibilidades de viver: há a crise agrícola, o desemprego, o latifúndio, a miséria que ceifa os camponeses como as espigas do trigo.
Em 1897 (Artémides tem 17 anos) os Zatti partem. Baía Blanca e toda a Argentina, naqueles anos, estão cheias de emigrantes italianos, que trabalham no duro e em silêncio. O tio espera-os, e ajuda o pai a instalar uma banca no mercado. Artémides trabalha a fabricar tijolos.
A vida de Dom Bosco e uma ideia
Há muitos anticlericais em Baía Blanca, mas ao domingo os Zatti vão todos à igreja. A igreja está confiada aos Salesianos de Dom Bosco, chegados como missionários à Argentina 22 anos antes. O pároco chama-se Carlos Cavalli, e Artémides ajuda-o a manter em ordem a igreja, a acompanha-o na visita aos doentes, quando não está a trabalhar nos tijolos. O padre Carlos coloca-lhe nas mãos a Vida de Dom Bosco, e Artémides lê-a de uma assentada. E vem-lhe à cabeça uma ideia: «E se também eu me fizesse salesiano?». Artémides tem agora 19 anos, e fala disso com o seu Pai. O bom homem encolhe os ombros: «És grande, podes decidir da tua vida. Mas pensa bem, porque se começas um caminho deves ir até ao fim».
As casas salesianas na Argentina são numerosas e espalhadas um pouco por todo o lado. A que recebe os jovens que querem preparar-se para a vida salesiana fica em Bernal, perto de Buenos Aires.
A Bernal, chega um jovem salesiano tuberculoso, e Artémides oferece-se para cuidar dele. O salesiano, consumido pela tuberculose, morre. Artémides, de 22 anos, é sacudido por uma tosse persistente e consumido por uma febre. Recebe a visita de um médico que constata a tuberculose também nos pulmões de Zatti, e pergunta aos superiores: «Não tendes uma casa nos Andes, com ar puro e oxigenado? Pois bem, se quereis salvá-lo, enviai-o para lá».
A casa existe. Mas para lá chegar, Artémides tem de fazer uma viagem de 600 quilómetros para regressar a Baía Blanca, e dali empreender outra viagem de 700 quilómetros para oeste. Uma viagem que poderia arrasá-lo. Os primeiros 600 quilómetros que Zatti percorre num duro assento de terceira classe, levam-no a sua casa e à paróquia salesiana. Está destroçado. O padre Carlos escreve imediatamente aos superiores, e pouquíssimos dias depois anuncia à família: «Artémides não irá para os Andes, mas para a casa salesiana de Viedma. Ali há bons ares e um ótimo médico. E vai curar. Verás que não custa nada, Artémides, aqui está o dinheiro para a viagem».
Em Viedma nasce a única obra salesiana dotada de um hospital e de uma farmácia. Os missionários tiveram de os construir 14 anos antes. A cidade era um amontoado de pobres barracas onde se apinhavam aventureiros, indígenas, soldados. Qualquer doença podia ser mortal, porque faltavam até os medicamentos mais vulgares. Um salesiano, padre Evásio Garrone, havia sido enfermeiro no exército italiano, e Monsenhor Cagliero havia-o encarregado de construir uma farmácia. O padre Garrone foi promovido a «médico» em toda a linha e na farmácia começou uma estranha contabilidade: os ricos pagavam os remédios ao dobro do preço, e os pobres não pagavam nada. Ao lado da farmácia havia um estábulo. Foi limpo, desinfetado e dotado de uma cama e de um colchão. Nasceu assim também o hospital para os doentes que era impossível cuidar em suas casas.
Não padre, mas «médico»
Março de 1902. Artémides chega a Viedma e escreve à sua mãe: «Com grande alegria encontrei os meus queridos irmãos salesianos. Quanto à minha saúde, recebi a visita do médico padre Garrone, e assegurou-me que daqui a um mês estarei curado». Na realidade a cura não demorou um mês, mas dois anos.
Em 1908, aos 28 anos de idade, Artémides faz os votos perpétuos: é salesiano para sempre. Depois de ter consultado os superiores, decidiu deixar os estudos para o sacerdócio e dedicar-se a ajudar o padre Garrone.
No dia 8 de janeiro o padre Garrone morre. De repente, Artémides Zatti vê-se sozinho à frente da «Farmácia de
S. Francisco» e do «Hospital de S. José». Para estar em regra perante a lei, o superior salesiano contrata um médico diplomado, que se torna responsável legal perante a autoridade. Mas, de facto, o médico de todos é ele, Artémides Zatti, com os seus escassos estudos, mas com muito amor por todos os doentes.
Em 1913 os desejos de Artémides começam a realizar-se: lança-se a primeira pedra de um novo hospital. Por agora construir-se-á só o rés-do-chão, mas logo que haja dinheiro… A dificuldade maior é sempre a de arranjar o dinheiro necessário. Quando as contas estão no vermelho, Zatti pega na bicicleta, põe um chapéu e vai pedir esmola. Bate às raras portas dos ricos: «Senhor Pedro, poderia emprestar cinco mil pesos ao Senhor?». «Ao Senhor?», pergunta estupefacto o homem rico. «Sim, senhor Pedro. O Senhor disse que o que fazemos aos doentes, é a Ele que o fazemos. É um bom negócio emprestar ao Senhor».
O Banco Nacional abriu uma agência em Viedma, e entregou a Zatti a conta corrente n.º 226. Artémides gasta o que consta na caderneta, e também o que não consta. E um dia o Banco manda-o chamar. Há uma elevada conta no vermelho a saldar de imediato, de outra forma serão suspensas as práticas concedidas para hipotecar o Hospital. Zatti permanece ali, apalermado, diante do diretor do Banco. Chora, reza e não sabe que fazer. Dinheiro não tem. A única coisa que tem são mais dívidas.
Alguém do Banco telefona ao Bispo Monsenhor Esandi. O Bispo resmunga, e diz que de uma forma ou de outra proverá. Chama o seu vigário. «Telefonam-me que Zatti está a chorar no Banco porque não tem com que pagar uma elevada soma em débito. Sempre a mesma coisa! Temos algum dinheiro em caixa?» «O dinheiro para imprimir o próximo número do jornal diocesano». «Leva-o depressa ao diretor do Banco, e salva aquele pobre homem».
Com mágoa, Artémides Zatti tem de admitir que os bancos não «emprestam nada ao Senhor». Fazem negócio e basta. Mas como cristão teimoso conclui: «São eles que estão enganados, não eu». E continua assim.
Chegou ao hospital um pobrezinho coberto de andrajos, foi tratado e curado, mas não pode sair vestindo novamente aqueles andrajos. Zatti vai a casa de uma família: «Não tendes um fato para emprestar ao Senhor?». Mostram-lhe um fato muito usado. E ele: «Não tendes outro mais bonito? Ao Senhor devemos dar o melhor que temos».
Chegou um índio sujo e aleijado. Zatti grita à enfermeira: «Irmãzinha, prepare uma cama para o Senhor».
E quando chega um rapazinho faminto e andrajoso, pergunta à irmã: «Tem uma sopa quente e um fato para um Jesus de dez anos?».
À frente do Hospital surgiu uma farmácia verdadeira, com um farmacêutico diplomado. Por lei, a farmácia do Hospital deveria fechar. Mas Zatti sabe que na nova farmácia todos terão de pagar tudo. Assim os pobres já não terão medicamentos. Combina com os superiores, passa dias e noites com os estudos de farmácia, e apresenta-se em La Plata para fazer os exames necessários. Regressa munido também ele de diploma regular. E a farmácia do Hospital pode continuar legalmente o seu serviço aos pobres. Disseram-lhe muitas vezes que devia fazer um jogo duplo, e ele respondeu: «Mas já o faço. No bolso direito meto o dinheiro que recebo, e no esquerdo as contas a pagar. Mais jogo duplo do que isto?».
E olhou para o alto
19 de julho 1950. O depósito da água tem uma rotura. Debaixo da chuva, Artémides Zatti (70 anos) empoleira-se numa alta escada de mão para ir repará-lo. Um pé escorrega, a escada cai. Uma grande queda, com ferimentos na cabeça, todo o corpo cheio de contusões. Tenta dizer: «Não é nada», mas ele mesmo sabe que não é verdade.
Os velhos móveis parecem sólidos e eternos. Mas se caem, ainda que seja só uma vez, ficam todos em pedaços. E de repente Zatti dá-se conta de que está velho e doente. Sente uma dor persistente no lado esquerdo, distúrbios contínuos. Sabe o suficiente de medicina para dizer: «É um tumor no pâncreas. Não vos preocupeis, porque não há remédio». Alguém o surpreende a chorar em silêncio, e logo esconde as lágrimas como uma culpa. «Sofre?», perguntam-lhe. E ele: «Não é isso. É que sou um ferro velho, já inútil». Pede a Santa Unção, renova as promessas do Batismo e os votos religiosos. A quem pergunta «Como está?», responde de maneira estranha: «Para cima». E olha para o alto.
O Senhor vem buscá-lo do dia 15 de março de 1951. Aquele Senhor a quem Artémides Zatti não emprestou a vida, mas antes lha deu. Hoje a Igreja honra-o como santo.
O filme sobre a sua vida
Em julho de 2020 foi lançada a produção cinematográfica intitulada “Zatti, nosso irmão”, realizada pelos Salesianos da Argentina, através do Boletim Salesiano, sobre alguns aspetos relevantes da vida do Beato Artémides Zatti. A ideia original desta curta-metragem foi do Padre Ricardo Campoli, o realizador que deu vida a esta obra magnífica. O filme foi apoiado desde o início pelo Reitor-Mor, Pe. Ángel Fernández Artime, que convidou a «Misiones Salesianas» de Espanha a colaborar. O filme, que permite conhecer a espiritualidade e a santidade do Beato, conta a sua experiência de enfermeiro e religioso e permite-nos ver com outro olhar a tarefa de cuidar dos outros.
“Zatti nosso irmão” dura 32 minutos, atingiu quase 65 mil visualizações e está disponível no Youtube em https://www.youtube.com/watch?v=qXWYBTRcNM8.
Texto originalmente publicado no Boletim Salesiano de Itália. Fotografias: Arquivo SDB
Publicado no Boletim Salesiano n.º 594 de setembro/outubro de 2022
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