Pouco mais de um mês após a conclusão do 28.° Capítulo Geral e sua reeleição como Reitor-Mor, o Pe. Ángel Fernández Artime concedeu uma longa entrevista à publicação católica “Alfa y Omega”. Na ocasião, o Sucessor de Dom Bosco abordou diversos temas, das perspetivas para o novo sexénio ao estado da Congregação, sem esquecer o aspeto missionário e o seu desejo de viver numa fronteira quando o seu mandato terminar. Dedicou também grande parte da conversa ao assunto que nos últimos meses afeta o mundo inteiro e que nos levou a uma mudança drástica e radical em nossas vidas: a pandemia do novo coronavírus.
Que balanço traça dos seus seis anos como Reitor-Mor?
Nos primeiros dias do Capítulo Geral, uma das minhas responsabilidades era apresentar aos 247 membros do Capítulo Geral 28.º da Congregação Salesiana a “Relação sobre o estado da Congregação”, na tentativa de oferecer um balanço o mais objetivo possível dos êxitos e das falhas, do caminho percorrido e do que resta percorrer, dos pontos fortes e dos pontos fracos que nos caracterizam como Salesianos de Dom Bosco, presentes nas 134 nações do mundo, subdivididos em 90 Províncias Religiosas a que chamamos Inspetorias.
Ao longo destes seis anos, acalentei no meu coração um desejo e uma convicção muito profunda, de que fiz muitas vezes motivo da minha oração pessoal: que ao fim dos seis anos a Congregação Salesiana pudesse ser ainda mais fiel ao carisma recebido de Dom Bosco. E apesar do facto evidente de existirem fragilidades humanas, creio que se pode afirmar que a Congregação Salesiana, hoje em dia, continua a ser uma parte muito viva da Igreja, criando comunhão eclesial nos países onde nos encontramos. A evangelização e a educação na fé é a prioridade carismática que se realiza através da educação e da formação integral da pessoa. Continuamos a dar a vida pelos jovens em toda a parte do mundo e não nos afastamos dos mais pobres, embora as realidades do mundo sejam muito diversas nos cinco continentes. E creio poder afirmar que a Congregação vive anos de profunda serenidade e deseja ser significativa sempre que se trate de servir especialmente os jovens e as suas famílias.
Qual era o programa das três semanas do Capítulo que não pôde realizar-se?
Antes de tudo, recordar que tivemos de concluir – e não só interromper – o Capítulo Geral três semanas antes do tempo, devido ao novo coronavírus (Covid-19), e em obediência à normativa emanada pelo Governo da Nação Italiana. Como sentimos que algo assim poderia acontecer, naquele momento decidimos antecipar uma semana o discernimento e a eleição do Reitor-Mor e de todo o Conselho Geral. Este processo decorreu na quarta semana, no fim da qual os capitulares começaram a regressar aos seus países de origem, e não sem dificuldade. Com efeito 46 capitulares continuam em Valdocco porque não conseguiram viajar para os seus respetivos países.
O trabalho que nos faltava completar era fundamentalmente a discussão em assembleia capitular das diferentes propostas estudadas nas comissões e a votação do documento final que resultou da reflexão das três semanas precedentes. Isto não foi possível e, portanto, não dispomos de um documento capitular aprovado em sessão plenária, mas sim de reflexões amplas e deliberações que o Reitor-Mor com seu Conselho assumirão como linha de trabalho e que farão chegar em breve ao mundo salesiano, quando pudermos reunir-nos pela primeira vez como Conselho Geral.
É possível recuperar agora este trabalho?
Não. O trabalho capitular não vai ser concluído porque não se vai convocar o Capítulo Geral novamente. Contudo, não é um Capítulo Geral falhado. Com efeito, embora não se possa falar de um documento capitular aprovado em Assembleia, teremos muitas orientações e reflexões do próprio Capítulo e das suas comissões, que serão reunidas num documento que será enviado a toda a Congregação. O Conselho Geral recebeu a incumbência de assumir as reflexões capitulares e mediante elas elaborar o projeto de animação e governo para os próximos seis anos.
Como está a encarar a sua reeleição?
Vivo-a com muita serenidade, com coragem e muita esperança. Como disse naquele momento à assembleia capitular, sentia-me preparado tanto para concluir o meu serviço como para continuá-lo. Sentia-me absolutamente livre. Não esperava nada. Por isso mesmo, aceito de bom grado a reeleição e assumo-a com toda a responsabilidade e entusiasmo mas, como acabo de dizer, sentindo-me muito livre.
Naturalmente, o segundo sexénio não será como o primeiro. Agora conheço bem a Congregação e a sua presença nas 134 nações, das quais visitei 100. Haverá, então, uma oportunidade para ser mais incisivo no essencial, para acompanhar mais os processos onde for necessário; uma oportunidade de sonhar e realizar novas presenças, desde que estejam na primeira linha de evangelização e educação dos mais pobres. Serão anos em que continuaremos a tornar realidade o que é inquestionável como Congregação: não podemos abandonar nenhum lugar de fronteira nem de “missio ad gentes”, nem de presenças já centenárias na Amazónia. Recordo um facto: em toda a região amazónica (que inclui quatro nações em que os Salesianos se encontram), compartilhamos a vida com 63 povos indígenas. Como Salesianos, filhos de Dom Bosco, este é um elemento carismático essencial e inquestionável para nós. Posso dizer o mesmo da longa cordilheira andina, e igualmente de outras partes do mundo.
Consultaram todos os jovens salesianos do mundo. Quais foram as respostas dos jovens? O que transmitiram? O que pedem os jovens à Congregação?
Sim, é verdade. Devo dizer que – considerado também o interesse dos leitores – tratou-se de um Capítulo Geral salesiano em que nos dois anos da sua preparação realizámos duas consultas importantes. Uma em relação à formação dos Salesianos jovens. Nela demos a palavra a 3.670 jovens Salesianos que estão nos seus primeiros anos de profissão religiosa. E disseram-nos muitas coisas interessantíssimas sobre como se veem e o que pensam como jovens (certamente jovens consagrados salesianos, mas jovens como os seus contemporâneos).
As outras consultas foram feitas a jovens de milhares de presenças salesianas no mundo e, por último, ao grupo de jovens dos cinco continentes que compartilhou connosco uma intensa semana em Valdocco.
A sua presença transmitiu frescura, vitalidade, alegria. E eles foram muito incisivos e claros na sua mensagem. Disseram-nos que nos querem bem. Que amam os Salesianos e que nos querem ao seu lado no caminho da vida. Pediram-nos que os acompanhemos nos anos em que mais precisam de nós. Disseram-nos que nos deixemos amar por eles. Pediram-nos que sejamos amigos, irmãos deles e sempre pais, porque, por mais fortes que tenham sido, “Muitos jovens do mundo sentem muita falta de um pai. Falta-nos experiência de paternidade”. E, por último, com emoção em muitos momentos disseram-nos: “Precisamos sobretudo que nos mostreis e digais milhentas vezes que Deus nos ama”.
Não sei se teve a possibilidade de falar com o Papa após a sua reeleição.
Não. Não falei com o Santo Padre depois da minha eleição, mas falei com ele na sexta-feira anterior. Primeiramente, enviou-me uma mensagem para todos os capitulares e, depois, falámos por telefone quando ele mesmo me contactou. Podem imaginar o que significou para um Capítulo Geral inteiro como o nosso que o Santo Padre nos chamasse para nos dizer que estava a enviar-nos algo de importante para ele e para nós. Uma mensagem que não tem nada de formal e se torna um programa para todos nós. Uma mensagem magnífica que estamos já a traduzir nas linhas de governo dos próximos anos. Sem dúvida, temos um Papa que ama a todos na Igreja, e ama cada homem e cada mulher de boa vontade. E também nós, como Congregação e Família Salesiana, nos sentimos muito queridos pelo Santo Padre. Para mim é mais do que evidente que vivemos um tempo de Graça na Igreja, no meio de tanta dor e tanta fragilidade da própria Igreja.
Quais são as suas ideias-chave para os próximos seis anos?
Pode-se imaginar que ainda temos de aprofundar o que queremos projetar para os próximos seis anos, mas posso dizer em que sentido irão os nossos esforços.
Devemos continuar a crescer na identidade carismática, ou seja, dizer o que significa hoje, no século XXI, ser Salesianos de Dom Bosco como ele queria que fôssemos, e estar conscientes da prioridade que temos na nossa vocação de evangelizadores dos jovens, educadores deles junto com suas famílias, e testemunhas do amor de Deus por eles.
Hoje, mais do que nunca, somos chamados a estar afetiva e efetivamente entre os jovens. Ou seja, a voltar cada vez mais a Dom Bosco. A isto chamo “sacramento salesiano” da presença.
A formação do salesiano e do jovem salesiano de que o mundo e a Igreja precisam hoje, onde quer que estejamos, é uma prioridade para nós. Não serve a ninguém uma formação genérica que mate a parte mais essencial do nosso carisma.
Sonho que, quando se ouve dizer a palavra salesiano proferida hoje no mundo e nas nossas sociedades, as pessoas compreendam que se fala dos filhos de Dom Bosco que existem e vivem para os jovens, que os amam “loucamente”, como Deus ama os seus filhos e as suas filhas, e que tomam opções ousadas e radicais por eles.
É a hora da generosidade na nossa Congregação entendida como disponibilidade de todos os Salesianos do mundo, os 14.500 que somos, devendo ajudar-se em qualquer parte do mundo, em qualquer país e nação. Não somos Salesianos para uma terra ou região. Somos Salesianos de Dom Bosco, e a missão e os jovens e as jovens que não têm oportunidades, os descartados, os mais frágeis podem estar à nossa espera e a precisar de nós nos mais diversos lugares. Precisamos de ir ter com eles e, para isso, chamaremos os salesianos de um país e de outro para continuar a ampliar os horizontes e as novas fronteiras da missão salesiana.
Por fim, pretendemos continuar a crescer no que hoje é já uma grande força e um verdadeiro dom. Diz respeito à realidade da Família Salesiana no mundo e à missão educativa e evangelizadora que compartilhamos com centenas de milhares de leigos nos países a que já me referi. Esta é ainda força e desafio ao mesmo tempo.
O que acontecerá no fim deste segundo mandato? O que fará?
Muito simples. Se ainda gozar do dom da vida, no dia em que for eleito o novo Reitor-Mor, dentro de seis anos, no mesmo instante deixarei de presidir o Capítulo Geral. O novo Reitor-Mor passará a presidir o Capítulo. Eu continuarei a participar na assembleia e quando terminar vou colocar-me à disposição do Reitor-Mor. Tenho ideias claras sobre o que desejaria: viver os anos futuros em qualquer ambiente simples, em qualquer lugar de missão nos Andes ou noutras montanhas, em lugares de missão entre os mais pobres, entre as pessoas humildes, numa simples paróquia, ou no centro juvenil salesiano e no oratório para rapazes e raparigas pobres, ou numa casa de acolhimento para rapazes da rua. Este é o meu sonho e espero poder vivê-lo.
Antes do coronavírus, falava-se muito de prevenção dos abusos e das mulheres. De que modo os Salesianos enfrentam ambas as situações? Que medidas os Salesianos implementaram nos dois campos?
É certamente uma das páginas mais tristes da história da Igreja. E é a maior tragédia e o maior dano que um Salesiano pode causar, pois prometemos, como Dom Bosco, que a nossa vida seria para os jovens. Posso assegurar-lhe que desde há muitos anos (falo também da minha experiência como provincial desde 2000), estamos a consolidar e a construir um código ético em toda a parte do mundo em que nos encontramos. E acrescento mais uma tonalidade: desde há muito tempo, e notou-se com muita força neste Capítulo Geral, falamos, em sintonia com o Sínodo dos Bispos sobre os jovens e em comunhão com a Exortação Apostólica do Papa sobre este assunto, sobre todos os tipos de abuso. Eu pedi à nossa Congregação a opção radical, preferencial, pessoal, institucional e estrutural em favor dos rapazes e raparigas mais necessitados, pobres e excluídos. E também a opção prioritária e radical na defesa dos rapazes e raparigas e das jovens vítimas de qualquer abuso, também o abuso sexual, mas não só: o abuso de violência, de falta de justiça, abuso de poder… Tão terrível que mancha e destrói.
Mas permita-me apenas mais um ponto crítico sobre este tópico tão doloroso. Formulo-o numa pergunta: “Quando teremos a honestidade – a honestidade como sociedade – de dizer que temos um sério problema social, no que se refere aos abusos sexuais de menores, que não se enfrenta? Quando diremos socialmente e reconheceremos que a grande maioria destas situações ocorre em ambientes familiares, com os pais ou com outros membros da família? Quando teremos coragem social para estender a denúncia a quantas instituições e grupos estão envolvidos? Sinceramente, acredito ser um problema que não é tratado socialmente até as últimas consequências.
Por fim, em relação às mulheres, direi duas coisas: a primeira é que Dom Bosco sempre teve no Oratório de Valdocco a figura da mãe, da mãe para seus filhos. A primeira foi a sua mãe, Mãe Margarida, seguida de outras mães de Salesianos (por exemplo, do Beato Miguel Rua, seu primeiro sucessor) e até a mãe do Bispo D. Gastaldi. A segunda é a seguinte: por muitos anos o Magistério da Congregação Salesiana, através dos Capítulos Gerais, solicitou que as mulheres tivessem uma responsabilidade educativa nas presenças salesianas. Houve uma reflexão abundante, que destacou claramente o valor e a importância da presença das mulheres nos trabalhos educativos salesianos.
O senhor tem experiência internacional. Visitou uma infinidade de países. O que pensa quando o Papa afirma que estamos “numa terceira guerra mundial aos pedaços” ou quando fala da “globalização da indiferença”?
No meu serviço à Congregação Salesiana, visitei 100 nações nos últimos seis anos, nos cinco continentes. E pude escutar muito e ver ainda mais. Pelo meu caráter pessoal e pela minha identidade carismática salesiana tendo a olhar com esperança. Contudo, creio certamente que estamos a viver anos muito difíceis. Muitos de nós, eu entre todos, acreditávamos há 20 anos que o caminho para a paz e o caminho para uma crescente extensão dos direitos humanos no mundo era lento, embora visível, tangível e verificável. Nos últimos 20 anos, vivemos um retrocesso inimaginável, seja devido ao terrorismo internacional, seja devido à exploração e abuso nos movimentos migratórios existentes no mundo, seja devido às guerras ou à passividade face a algumas delas.
Agora mesmo, estamos a ser atingidos por esta terrível pandemia. Jamais imagináramos algo assim (como jamais imaginámos que seria possível o terrorismo dos últimos 20 anos em grande parte do mundo, especialmente ocidental). E esta mesma pandemia está a trazer à luz e a manifestar o melhor de muitas pessoas e grupos sociais (por exemplo, médicos, enfermeiros, serviços de proteção social, etc.), e o pior do egoísmo e do individualismo da política de muitas nações. Na minha opinião, é um pecado e não será fácil esquecê-lo depois no pós-pandemia.
A humanidade vive uma crise mundial quase sem precedentes. Como católicos, como podemos enfrentar a pandemia do novo coronavírus?
Diz-se mesmo isto: estamos a viver uma crise mundial sem precedentes. Um vírus paralisou o mundo. O planeta Terra continua a girar sobre si mesmo, mas o mundo como tal, de certo modo, está paralisado. E, depois do efeito da pandemia sobre a vida e a morte, sobre a saúde das pessoas, espera-nos no mundo inteiro, a começar pelo chamado “primeiro mundo”, o difícil momento a superar em relação às condições de vida, à economia, à macroeconomia dos grandes, e à pequena economia, a da sobrevivência de milhões e milhões de famílias. A isto, temos de acrescentar a crise que já está a tornar-se presente e é mais grave que o vírus: a crise da pobreza que cresce e da fome que algumas nações estão a começar a sentir, porque simplesmente, “se hoje não trabalho, não posso comer”. Muitíssimas nações não têm as possibilidades de “resistência social” que outras têm (embora esforçando-se).
O que podemos fazer como católicos? Eu diria que, antes de mais nada, oxalá tenhamos aprendido alguma coisa de tudo o que estamos a viver. Por exemplo, voltaremos a viver acima das nossas possibilidades ou teremos mais ritmos e espaços humanos? Queremos recuperar o tempo perdido no consumo, ter mais e mais, e gastar acima das nossas possibilidades e das do planeta Terra ou aprenderemos que é possível viver felizes com o necessário e com mais sobriedade? Continuaremos desenfreados na corrida pela poluição do mundo ou daremos descanso ao planeta, como o novo vírus nos obrigou a fazer? Após esta pandemia, não é possível uma indiferença ecológica como a que se vê repetidamente nas cimeiras sobre o clima.
E é claro que diante das situações de pobreza que vão explodir, como cristãos e católicos, devemos continuar a responder à altura, com criatividade e generosidade. E, em geral, em situações-limite, tendemos a fazer o nosso melhor. Estou muito confiante nisto.
Gostaria de terminar esta minha reflexão convidando justamente à solidariedade, fraternidade, caridade e, para os que são crentes, também à oração com Fé no Deus que não faz magia mas está ao nosso lado na nossa caminhada, por vezes, cansativa como a atual.
Neste sentido, quis ficar com a imagem do Papa Francisco na sexta-feira, 27 de março, na oração numa Praça de São Pedro vazia e chuvosa. Certamente, nunca esteve tão só, mas ao mesmo tempo nunca esteve tão acompanhado por tanta gente no mundo inteiro.
Fonte: José Calderero de Aldecoa/Alfa y Omega, Semanario Católico de Información