No artigo anterior vimos que Jesus traz como que impressa, no seu rosto, a relação íntima e constante com Deus, o seu “Abbá”, o grande Tu a quem se dirige ininterruptamente e com quem partilha a paixão sem limites pela plenitude da vida dos homens.
Queremos agora explorar uma outra faceta do seu rosto, a sua relação com o Espírito, que não é para ele tanto um Tu com quem dialoga, como é o Pai, mas antes a força que o impele, o fogo que arde no seu coração, a atmosfera que respira e na qual vive e atua. Assim se percebe também o “aspeto trinitário” do rosto de Jesus.
Algumas observações exegéticas
Examinando os Evangelhos, os estudiosos acreditam, com base em fundamentos razoáveis, que Jesus falou pouco do Espírito, apesar de existirem alguns textos que parecem dizer o contrário, como o discurso inaugural da sua missão em Nazaré, em Lc 4,18-19, ou o discurso de despedida na Última Ceia, em Jo 14-16. Estes são dois exemplos em que se comprova a liberdade com que os evangelistas transmitiram as suas palavras.
É verdade que em Israel existia uma longa tradição de fé no Espírito de Deus, atestada desde as primeiras palavras da Bíblia (Gn 1,2), e depois numa série ininterrupta de outros textos históricos, proféticos e sapienciais. O Espírito aparece aí como a força criadora e vivificante de Deus que atua no mundo para realizar a sua vontade benevolente para com ele. Uma força que muitas vezes irrompe, como o vento que a etimologia do termo recorda, nos homens e nas mulheres, impelindo-os a falar e a agir na direção do grande desígnio divino. Os profetas, em particular, são os homens do Espírito. Neles, esse poder torna-se palavra que anuncia, denuncia, promete, adverte, ameaça, encoraja, consola…
Não é de excluir, e até se pode supor com fundamento, que Jesus tenha frequentado uma tal tradição. É muito provável que a frase, tirada do livro de Isaías e citada por Lucas no discurso inaugural acima mencionado – “O Espírito do Senhor está sobre mim, por isso me ungiu e me enviou” (Lc 4,18; Is 61,1) – reflita a consciência que ele tinha de ser “habitado” pelo Espírito. Ele deve ter-se sentido como que possuído por aquela força divina que o Pai lhe tinha comunicado. Talvez a cena do seu batismo, narrada pelos sinópticos e referida também por João, em que o Espírito desce sobre ele como uma pomba (Mt 3,6; Mc 1,10; Lc 3,21-22; Jo 1,32), seja uma forma de exprimir esta consciência no seu momento inicial.
Apesar disso, os exegetas consideram que ele falou pouco do Espírito. Mas sustentam também que, mesmo sem fazer disso objeto dos seus discursos, ele aparecia, sem dúvida, aos olhos das pessoas que o seguiam e admiravam, como um homem altamente espiritual, isto é, cheio do Espírito de Deus.
Basta seguir os Evangelhos com um pouco de atenção para perceber a convicção que as primeiras comunidades tinham a este respeito. É o que se depreende do facto de associarem a sua conceção no seio de Maria à intervenção do Espírito (Lc 1,35), de narrarem a manifestação do Espírito no seu batismo (Mt 3,6; Mc 1,10; Lc 3,21-22; Jo 1,32), da sua ida para o deserto das tentações sob o impulso do Espírito (Mt 3,1; Mc 1,12), o início da missão com a menção da unção do Espírito (Lc 4,16-19), os exorcismos feitos “com o dedo de Deus”, símbolo do Espírito (Lc 11,20), a oração de ação de graças feita no Espírito (Lc 10,21)…
O Espírito manifesta-se em Jesus como paixão pela vida
De acordo com os registos evangélicos, o Espírito de Deus manifestou-se em Jesus de várias maneiras.
Manifestou-se, antes de mais, como uma paixão pela vida abundante de todos. Como já foi referido, os escritos do Novo Testamento dão-nos a conhecer uma convicção profunda dos primeiros discípulos: aquele Espírito de Deus que se tinha manifestado de várias maneiras ao longo da longa história de Israel, apoderando-se de alguma forma de homens e mulheres para atuar através deles para a salvação do povo, habitava em Jesus de forma estável. E não habitou de uma forma inerte e passiva, mas de uma forma intensamente dinâmica.
De facto, depois da narração evangélica do seu batismo, em que o Espírito desce sobre Ele, mostram que é o mesmo Espírito que O move constantemente para o cumprimento da sua missão, a começar pelos quarenta dias passados no deserto (Mt 4,1-11; Mc 1,12-13; Lc 4,1-13). As numerosas curas que realizou são igualmente atribuídas a essa energia que, saindo d’Ele, “curava todos” (Lc 6,19; cf. Mc 5,25-31; Lc 8,43-46), e os exorcismos com que libertava os que estavam sob o poder dos espíritos malignos são atribuídos ao “dedo de Deus” que atuava através d’Ele (Lc 11,20; Mt 12,28). Duas metáforas – energia e dedo – com que os evangelhos sinópticos exprimem a presença vivificante do Espírito que atua nele.
João, num outro contexto, deixa transparecer a mesma convicção. É o que se pode ver no relato da intervenção de Jesus durante a Festa dos Tabernáculos, em que, no meio da procissão solene que transportava água viva da fonte de Siloé para o Templo, se ouve a sua voz proclamar: ” Se alguém tem sede, venha a mim; e quem crê em mim que sacie a sua sede! Como diz a Escritura, hão de correr do seu coração rios de água viva”. E o evangelista acrescenta explicitamente que Ele entendia referir-se ao Espírito Santo (Jo 7,37-38). Segundo alguns intérpretes, os rios de água viva, a que as suas palavras aludem, brotam do seu próprio peito. É o Espírito que emana dele, porque está nele.
A imagem da água para falar do Espírito está, de facto, também presente num outro texto do mesmo evangelho, aquele que narra o encontro de Jesus com a samaritana junto ao poço de Jacob. A ela, que lhe pede água viva para não ter de voltar ao poço para a tirar, Jesus responde: “Quem beber da água que Eu lhe der, nunca mais terá sede: a água que Eu lhe der há de tornar-se nele em fonte de água que dá a vida eterna” (Jo 4,13-14). É fácil perceber a relação que o texto estabelece entre “água” e “vida eterna”, no sentido acima referido. E é também fácil perceber como o evangelista pensa em Jesus como fonte de vida plena, precisamente porque está cheio do Espírito Santo.
Fogo e água são duas realidades que se repelem na nossa experiência; mas no mundo dos símbolos podem combinar-se muito bem. Ambas servem para transmitir a mesma convicção: Jesus de Nazaré é um homem cheio do Espírito de Deus, um Espírito que é fogo e é água viva, e que não o deixa quieto, mas o impele constantemente a sair de si mesmo, de alguma forma, para a realização da única grande vontade de Deus, seu Pai: que os homens e as mulheres “tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10).
Poder-se-ia dizer, portanto, que o Espírito é a paixão infinita de Deus pela vida do mundo, e que Jesus está cheio dessa paixão.
O Espírito aparece em Jesus como Espírito de filiação
Outra forma de manifestação do Espírito em Jesus é a da filiação. Já dedicámos todo o artigo anterior a sublinhar o aspeto filial da sua experiência.
Um dos momentos mais fortes dessa experiência deve ter sido, podemos supor, o da oração. O facto de Jesus rezar pessoalmente é um dado adquirido, se tivermos em conta que ele era judeu e, como tal, seguia o costume dos seus compatriotas. Mas o facto é também atestado mais de uma vez expressamente pelos evangelhos (Mc 1,35; Lc 6,12; Hb 5,7; etc.). Por seu lado, João relata uma longa e solene oração – a chamada “oração sacerdotal” – que terá feito na Última Ceia, depois de ter falado longamente com os seus amigos (Jo 17,1-26).
Mas, sobretudo, é impressionante a narração que os sinópticos fazem da sua oração dolorosa no Jardim das Oliveiras, antes de ser traído e entregue aos adversários (Mt 26,36-45; Mc 14,32-40; Lc 22,39-45). Segundo a narração de Marcos, foi precisamente nesse contexto de angústia mortal que ele pronunciou a palavra que lhe era tão familiar, acrescentando depois a declaração da sua inteira disponibilidade para fazer a sua vontade: “Abbá, Pai, tudo te é possível; afasta de mim este cálice! Mas não se faça o que Eu quero, e sim o que Tu queres” (Mc 14,36). É uma oração de intensa confiança, mas ao mesmo tempo de extremo abandono.
Lucas põe nos seus lábios, no patíbulo da cruz, quando se encontra elevado entre o céu e a terra e dominado pelo mais profundo sentimento de abandono, as palavras repetidas mais de uma vez pelos salmistas do Antigo Testamento (Sl 16,5; 31,6.16): “Nas tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23,46), mas antepondo-lhe a invocação filial “Pai”, que provavelmente deveria ser substituída por “Abbá”. Assim, o que ele viveu ao longo de toda a sua vida encontra a sua expressão máxima no momento culminante da sua vida. Abandonou-se com confiança, mesmo no meio de terríveis dores físicas e do mais angustiante sentimento de solidão, nas mãos d’Aquele que sempre invocou como um Pai terno e solícito. Morreu como um filho, entregando-se ao amor inabalável de Deus.
Não é difícil deduzir destes factos a convicção de que ele estava cheio de um Espírito intensamente filial, que impregnava todos os seus pensamentos, palavras e ações.
O Espírito manifestou-se em Jesus como Espírito de fraternidade
Há ainda um terceiro modo em que o Espírito de Deus se manifestava nele: se este Espírito, dinamicamente presente nele, o modelou como um filho que se relaciona com Deus com plena confiança e ternura, a ponto de lhe chamar “papá”, este mesmo Espírito fez dele um irmão entre irmãos e irmãs. Era um Espírito de fraternidade.
De facto, tanto as palavras como os atos de Jesus são impressionantes deste ponto de vista, quando se leem os Evangelhos. A parábola do Bom Samaritano (Lc 10,30-37), que ele conta em resposta à pergunta de um mestre sobre o principal mandamento da Lei, revela de forma brilhante a disposição radical e, diríamos mesmo, visceral que ele próprio tinha. Perante o homem deixado meio morto pelos ladrões à beira da estrada, enquanto o sacerdote e o levita prosseguem o seu caminho sem parar, o samaritano deixa-se compadecer e comove-se profundamente. A palavra utilizada pelo texto original para descrever esta emoção refere-se às entranhas: ele, diz a narração, “sentiu-se tocado no mais íntimo das suas entranhas”. E essa emoção leva-o a “usar de misericórdia”, a “fazer-se próximo”. Torna-se assim um verdadeiro irmão para aquele que, segundo o modo de ver da época em Israel, era um inimigo (cf. Jo 4,9).
Os Evangelhos apresentam um Jesus intensamente envolvido nas situações concretas daqueles que encontra no seu caminho, sejam eles homens ou mulheres. Ele mostra-se muito sensível às suas necessidades e expectativas, e essa sensibilidade leva-o a vibrar com eles, a comover-se intensamente com os seus sofrimentos e alegrias, e a ir ao encontro das suas necessidades.
Um só exemplo, entre muitos, é suficiente para o confirmar. É o caso da ressurreição do filho da viúva de Naim, narrada em Lc 7,12-15. A cena inicial é desoladora: uma mãe viúva, acompanhada por muitas pessoas da aldeia, caminha chorando atrás do caixão em que levam o seu único filho para ser sepultado. Jesus encontra-a e reage, antes de mais, de forma visceral. O texto, de facto, usando o mesmo termo da parábola do Bom Samaritano, diz: “Vendo-a, o Senhor compadeceu-se dela e disse-lhe: «Não chores.»”. Podemos ler nas entrelinhas: ele comove-se com a dor da mulher e intervém, exortando-a a não chorar. Uma exortação que pode soar a sarcasmo ou a piedade estéril, mas que adquire o seu verdadeiro significado no que se segue: “Aproximando-se, tocou no caixão, e os que o transportavam pararam. Disse então: «Jovem, Eu te ordeno: Levanta-te!» O morto sentou-se e começou a falar. E Jesus entregou-o à sua mãe”. Mais uma vez, a sensibilidade fraterna de Jesus exprime-se a dois níveis: o da emoção intensa e o da intervenção concreta que dela resulta.
Este exemplo mostra como o Espírito que move Jesus é verdadeiramente uma força que o leva a fazer-se ativamente irmão dos outros, amando apaixonadamente a sua vida e a sua verdadeira felicidade. Para ele, ser irmão não é um mero sentimento, mas um assumir-se séria e ativamente responsável pela vida e pela morte dos outros. É, em última análise, a expressão da paixão pelo Reino de Deus que enche o seu coração. Assim se explica que este Espírito de fraternidade o leve a cuidar especialmente dos que têm menos vida.
O Espírito produzia em Jesus uma relação serena e madura consigo mesmo
A relação consigo mesmo foi também impregnada em Jesus pelo Espírito de Deus, sendo por isso uma relação espiritual. É o que se pode deduzir dos efeitos que se manifestam no seu modo de ser e de agir.
Porque ele nunca parece estar egoisticamente fechado em si mesmo. Paulo exprime-o bem com a sua frase concisa: “Cristo não procurou o que lhe agradava” (Rm 15,3). E os Evangelhos, em uníssono, atestam-no: não viveu para si mesmo, não se reservou para si mesmo, mas viveu pondo-se ao serviço de Deus e dos outros. Usando a terminologia dos psicólogos, poderíamos dizer que ele não foi um “ser de prazer e de desejo”, que não tinha ainda uma verdadeira consciência nem de si nem dos outros, e que era, portanto, infantil e imaturo, mas, pelo contrário, “um ser liberto e isento de cobiça desordenada”, um homem que viveu descentralizado, isto é, que colocou o seu centro no outro. No Outro divino que ele invocava como “Abbá” e cuja vontade desejava ardentemente realizar constantemente e a todo o custo (Jo 4,34; Fil 2,8; Heb 7,7-8), e no outro humano de quem, como também já foi recordado, se tornou irmão ativo.
Nele, portanto, o amor da alteridade prevaleceu sobre o amor da necessidade. Isto explica a sua cruz, que humanamente parece um absurdo ou uma loucura (1 Cor 1,23), mas que na sua perspetiva exprime uma entrega total da vida pelos outros (Jo 15,13). Representa o momento mais alto da sua maturidade humana. Não é por acaso que o evangelho segundo São João vê na sua morte na cruz a sua exaltação à glória (Jo 3,14; 12,23-24), e o momento em que “atrai a si todas as coisas” (Jo 12,32).
Esta mesma descentralização no amor de alteridade, que no Novo Testamento se chama “agápe” (Jo 13,34; 15,17; 1Cor 13,1-13; etc.), foi também a base do seu autodomínio, das suas atitudes, emoções, ações e reações. Ora, como diz Paulo, “o amor (agápe) de Deus foi derramado nos nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5). O que mostra como a raiz de tal domínio é a presença do Espírito Santo de Deus no seu coração.
O Espírito suscitava em Jesus uma relação amigável com a natureza
Uma última manifestação da presença do Espírito de Deus em Jesus tem a ver com a sua peculiar relação com a natureza.
Dos dados que podemos recolher nos Evangelhos, fica-se com a justa impressão de que Ele tinha uma marcada sensibilidade para com a natureza, que considerava um dom do Pai, que “veste a erva do campo e alimenta as aves do céu” (Mt 6,26-30; Lc 12,24-28).
O ambiente natural encantador em que cresceu, as agradáveis colinas da Galileia, os seus vales florescentes na primavera e notavelmente fecundos no outono e, em particular, o belo lago de Genesaré, devem certamente ter contribuído para isso.
As referências aos elementos e aos fenómenos da natureza são frequentes nos seus discursos, sempre marcados por uma grande simpatia para com eles: o sol, o fogo, a luz e as trevas, o vento e as nuvens, a chuva e os relâmpagos, o pôr do sol, a água e o vinho, os lírios do campo, as aves do céu, os corvos, as ovelhas e os bois, os peixes, as raposas, as víboras, a vinha, a sementeira, a vindima, a pesca… são alguns dos muitos elementos da natureza que povoam os seus discursos e falam da sua serena relação com eles. Não as considerava indignas de atenção, mas, pelo contrário, relacionava-se com elas com uma naturalidade amigável e até com admiração. Nas narrativas transmitidas pelos Evangelhos, irradia um respeito saudável por toda a natureza e uma relação positiva com ela.
Jesus sabia certamente, como todo o povo de Israel, que o Espírito de Deus era um Espírito criador (Gn 1,3; Sl 103,30), que a natureza com a qual estava em contacto tinha brotado do Poder criador de Deus e que, portanto, tudo o que a natureza proporcionava aos homens para a sua vida e alegria era um dom do Espírito. Explica-se, portanto, como é que ele foi capaz de uma relação tão singular com ela, uma vez que ele próprio estava cheio desse Espírito.
O rosto espiritual de Jesus
A partir dos dados revisitados, o rosto de Jesus aparece como o de um homem verdadeiramente intensamente espiritual. Espiritual, mas não “espiritualista”.
Não há sinais de um dualismo espírito-matéria, ou alma-corpo ao estilo helenístico; também não há sinais de uma tendência para fugir a “este” mundo; pelo contrário, ao contrário de João Batista, ele vive imerso nele: gosta de estar com as pessoas, de partilhar as suas alegrias e sofrimentos, de se sentar à mesa com os amigos, de participar numa festa de casamento…
A sua espiritualidade consiste em viver tudo isto a partir de uma imersão total no Espírito divino.
(NPG 2004-05-34)