Rosto de Cristo, rosto de um homem soberanamente livre

A faceta do rosto de Cristo, que agora tomamos como objeto de contemplação, é talvez um dos traços a que os homens de hoje são mais sensíveis, especialmente os jovens, devido à sua maior sensibilidade. O Concílio Vaticano II reconheceu nele o núcleo fundamental da dignidade humana, como declarou no seu documento intitulado, precisamente, Dignitatis humanae.
Este aspeto da figura de Jesus está intimamente relacionado com o anterior, pois, como afirma Paulo, “onde está o Espírito do Senhor, aí está a liberdade” (2 Cor 3, 17).

Jesus mostra-se livre em relação aos laços familiares

Sem dúvida, os laços de sangue são muitas vezes, na experiência humana, os mais fortes e mais estreitos. Eles ligam as pessoas intimamente e, em mais de uma ocasião, levam-nas a atuar mesmo de uma forma que não desejariam. Não faltam casos em que uma pessoa é tão subjugada por eles que chega a ser sufocada por eles. Mais estreitos ainda costumam ser os laços com a mãe, com quem se pode ter relações que contribuem para o crescimento, mas que também impedem o amadurecimento. Mães possessivas e imaturas comprometem perigosamente a autonomia dos filhos, tornando-os infantis mesmo quando adultos.
No tempo de Jesus, estes vínculos eram muito fortes. Os da família direta, em parte, mas também, e talvez mais ainda, os da família alargada, o clã familiar. Para o bem e para o mal, estava-se ligado a ela, e qualquer afastamento poderia ser desastroso para o membro individual. No seu seio, existia uma forte solidariedade entre todos, de modo que o que se fazia a um era considerado como sendo feito a todos. Isto explica, por exemplo, a existência de uma figura como o “go’el”, ou seja, o vingador do sangue: ele devia vingar as ofensas feitas aos membros do clã, para que a justiça fosse restabelecida. O próprio JHWH era chamado por este nome, pois tinha de fazer justiça ao seu povo contra os seus inimigos (Sl 19,14; Is 49,26; 60,16).
Neste quadro de referência, o modo de atuar de Jesus assume uma relevância particular. Vê-se, em primeiro lugar, que ele se afasta do seu grupo familiar alargado, provocando naturalmente reações nos seus membros.
Um relato evangélico que torna isto claro é o de Mc 3,3; 21,31-35. Certamente que o eco do que ele dizia e fazia tinha chegado aos ouvidos do seu grupo familiar, que o considerava incorreto e perigoso: “Os seus […] saíram a ter mão nele, pois diziam: «Está fora de si!»” (3,21). Julgavam-no louco. Nenhum homem no seu perfeito juízo teria falado e agido como ele fez em Israel. Além disso, a vergonha da sua loucura caiu sobre toda a família. Era preciso resolver o assunto. Por isso, foram ter com Ele. E arrastaram também consigo a mãe d’Ele. Quando chegaram ao local, e vendo que ele estava rodeado de gente, “ficando do lado de fora, mandam-no chamar” (3,31). Julgavam-se no direito de o dominar e exigiam afastá-lo da atividade desenfreada a que se tinha entregado (3,20). Utilizavam os laços que o ligavam ao grupo para interferir na sua dedicação ao anúncio do Reino de Deus. Quando lhe disseram: “Estão lá fora a tua mãe e os teus irmãos que te procuram” (3,32), a reação de Jesus não se fez esperar. E foi uma reação impressionante. Erguendo-se acima da multidão, volta-se para eles e diz: “Quem são minha mãe e meus irmãos?» E, percorrendo com o olhar os que estavam sentados à volta dele, disse: «Aí estão minha mãe e meus irmãos. Aquele que fizer a vontade de Deus, esse é que é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (3,33-35).
De repente, as cadeias dos laços familiares foram quebradas: esses laços não podiam condicionar a sua missão. Outros laços eram agora mais importantes, aqueles que geravam nele a dedicação ao cumprimento da vontade do Pai. Assim, Jesus mostra-se livre, não preso às cadeias que a carne e o sangue podem criar. A sua paixão pelo Reino de Deus liberta-o de todos os laços naturais, mesmo os mais íntimos.
E não se contenta em experimentar essa liberdade, mas propõe-a também aos outros. É emblemática, a este respeito, a resposta que dá, numa linguagem que faz lembrar um paradoxo oriental, a quem lhe diz que o quer seguir, mas que lhe permite ir primeiro enterrar o pai: “Segue-me e deixa os mortos sepultar os seus mortos” (Mt 8,21-22). Na Antiguidade, nada era mais sagrado do que dar sepultura aos mortos e, em particular, aos seus próprios mortos. A história mitológica de Antígona exemplificava as exigências de tal dever. Jesus propõe uma liberdade ainda maior do que a de Antígona, que, para enterrar o seu irmão, desafia as leis do reino e as contraria, ao dizer ao discípulo que não se preocupe em enterrar o seu próprio pai, mas que O siga. Para ele, há laços que estão acima dos da natureza: são os criados pela partilha com Jesus do seu grande projeto. E é essa partilha que nos torna livres.
Mas Jesus mostra-se livre não só em relação à família alargada, mas também em relação aos laços que o unem à sua mãe, que ele deve ter amado ternamente, como o demonstra o relato da sua preocupação por ela no Evangelho da Paixão de João (Jo 19,26-27).
Há também um texto esclarecedor a este respeito, o de Lc 11,28. A narração, concentrada em duas linhas, é dominada por um “mas ele” que exprime também gramaticalmente o contraste entre aquilo que uma mulher do povo, tomada de entusiasmo, tinha feito objeto de louvor – “as entranhas que te trouxeram e os seios que te amamentaram”, isto é, os laços biológicos entre Jesus e a sua mãe -, e o que ele, pelo contrário, considerava importante – “os que escutam a Palavra de Deus e a põem em prática”, isto é, a dedicação ao acolhimento e à realização da vontade de Deus, fonte de novas relações entre os seus discípulos -. Quem faz sua esta dedicação subordina a ela qualquer outro tipo de relação, sem excluir os laços mais estreitos, mas ficando livre em relação a esses.

Leia também  Qual é a importância da oração dos Salmos?

A liberdade de Jesus em relação aos vínculos da lei

Quase tão rigorosos como os laços de sangue eram para um membro do povo de Israel os criados pela relação com a Lei. Expressão por excelência da vontade divina, a Lei dada a Moisés era a norma suprema da vida do povo, objeto de veneração e de amor por parte deste. Basta ler os 176 versículos apaixonados do Salmo 118 para nos convencermos disso. Ela regia toda a existência do judeu piedoso, individual e socialmente. Observando-o, estava-se seguro de viver segundo a vontade de Deus. Os rabinos defendiam que tomar sobre si o reino de Deus significava cumprir fielmente a Lei.
Ora, lendo os evangelhos, tem-se a nítida impressão de que Jesus, embora seguindo normalmente as prescrições da Lei, se comportava com extrema liberdade em relação a ela. Inclusive, em alguns casos, colocando-se acima dela e do seu autor, Moisés (Mt 5,21-22.27-28.31-32).
Um dos casos em que isso é mais evidente é no tratamento do preceito do descanso sabático, importante ao ponto de a sua violação ser punida com a pena de morte (Lv 15,33-36). Não são poucos os relatos evangélicos em que Jesus aparece contrariando – pelo menos segundo uma certa interpretação – esta lei. De facto, ele efectua frequentemente curas ao sábado, provocando duras críticas dos seus opositores (Mt 12,10-14; Mc 3,1-6; etc.).
A sua posição na ocasião em que, no sábado, os discípulos colhem espigas nos campos para se alimentarem é muito representativa a este respeito. Trata-se de uma ação que era considerada por alguns doutores da Lei como trabalho e, portanto, proibida ao sábado. “Repara! Porque fazem eles ao sábado o que não é permitido?”, repreendem-no os fariseus. E ele responde: “O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado! O Filho do Homem até do sábado é Senhor” (Mc 2,24.27-28). Esta colocação do homem acima de todas as leis, mesmo das consideradas mais sagradas, será uma das razões que o levará à morte, como se vê no episódio da cura do homem da mão paralisada (Mc 3,1-6).
É importante sublinhar a raiz última desta liberdade extrema de Jesus, também para compreender o seu verdadeiro significado. A sua liberdade não é, de facto, nem capricho nem busca da sua própria conveniência; brota da sua total dedicação à causa da vida em abundância para todos, abraçada em plenitude. O facto de se ter consagrado totalmente a ela liberta-o de tudo o resto.
Na realidade, portanto, ele não viola a Lei quando não age de acordo com as suas prescrições literais; o que ele faz é implementar o espírito da Lei, aquilo para o qual ela foi dada por Deus. Porque, como a própria etimologia da palavra hebraica pela qual é designada (torah) implica, ela é a iluminação do caminho que conduz à vida (Dt 30,19-20), e só se conduzir à vida é que cumpre o seu objetivo. Quando, aplicada à letra, em vez de conduzir à vida, conduzisse à morte, não deve ser posta em prática, porque contradiz aquilo para que foi dada.

Jesus, livre perante as regras da pureza-impureza

Como em muitos outros povos antigos, também em Israel havia uma distinção entre o que era considerado puro e o que era impuro. Não se tratava de uma qualificação moral, mas de uma qualificação “ritual”. Para participar no culto, eram necessárias certas condições, cuja ausência, mesmo que independente da vontade do indivíduo, proibia essa participação. O livro do Levítico descreve em pormenor essas condições. Constituem uma densa floresta de prescrições que acabam por criar uma espécie de “colete de forças”. Uma série quase interminável de coisas e ações faziam parte do mundo do impuro e tornaram-se tabus para a sensibilidade popular.
Jesus sentia-se totalmente livre perante tais prescrições, como o atestam unanimemente os Evangelhos. Transgrediu-as manifestamente, ao ponto de provocar o escândalo dos seus adversários.
Uma exposição “teórica” da sua avaliação das mesmas encontra-se na narração de Marcos 7,1-23. Aos fariseus e a alguns escribas que tinham vindo de Jerusalém e que, seguindo a tradição, não comiam “sem ter lavado e esfregado bem as mãos, conforme a tradição dos antigos; ao voltar da praça pública, não comem sem se lavar; e há muitos outros costumes que seguem, por tradição: lavagem das taças, dos jarros e das vasilhas de cobre”, e se admiravam que os seus discípulos não fizessem o mesmo, Jesus diz “Nada há fora do homem que, entrando nele, o possa tornar impuro. Mas o que sai do homem, isso é que o torna impuro” (7,15). E depois, falando em privado com os seus discípulos, reitera: “O que sai do homem, isso é que torna o homem impuro. Porque é do interior do coração dos homens que saem os maus pensamentos, as prostituições, roubos, assassínios, adultérios, ambições, perversidade, má fé, devassidão, inveja, maledicência, orgulho, desvarios. Todas estas maldades saem de dentro e tornam o homem impuro” (7,20-23).
Mas mais do que a afirmação “teórica”, é o seu modo de atuar que revela a sua maneira de pensar sobre estas coisas. Em várias ocasiões, passa ao lado das prescrições rituais e não se interessa de todo por elas. Isso vê-se claramente no caso do leproso que lhe pede para ser curado e a quem ele toca sem se importar que esse contacto o torne automaticamente impuro (Mc 1,41; cf. Lv 11,45-46; 22,4-6); ou no da mulher que sofria de um fluxo de sangue e que, cheia de fé, toca no seu manto, contagiando-O automaticamente com a sua impureza (Mc 5,25-34; (Mc 5,25-34; cf. Lv 15,25-27); ou ainda nos casos em que toma pela mão a filha morta de Jairo, em estado de total impureza (Mc 5,41; cf. Lv 22,4), ou em que se permite lavar-lhe os pés com lágrimas e enxugá-los com os cabelos de uma pecadora pública (Lc 7,37-38), etc.
Em todos estes relatos, verifica-se a grande liberdade de Jesus que, em vez de se preocupar com as leis criadas pelos homens e que com o uso se tornaram invioláveis, se interessa pela vida concreta das pessoas que tem diante de si. É precisamente esta preocupação que o torna livre.

Leia também  Qual a importância da Tradição em relação à oração?

A liberdade de Jesus em relação ao prestígio

Na sociedade israelita, como de resto em geral nas sociedades orientais da época, o prestígio era um dos valores fundamentais. Talvez até mais do que a riqueza. Isto deu origem a uma autêntica escada social, na qual cada um ocupava o seu lugar e tinha o seu “estatuto” com base na linhagem, no dinheiro, na autoridade, no saber. E esta escada era rigorosamente respeitada. Cada um devia observá-la cuidadosamente, nomeadamente através do seu modo de vestir, de falar, de se comportar e de ocupar o seu lugar nas assembleias, nos banquetes e nos encontros a diversos níveis.
Dentro desta hierarquia de prestígio, havia também homens e mulheres que “não contavam”, porque não tinham “estatuto”. Não ostentavam nem linhagem, nem riqueza, nem saber, nem virtude. Eram os pobres, os pecadores, os publicanos, as prostitutas, o “povo” ignorante.
Nos textos evangélicos, a atitude de Jesus perante esta situação é muito clara. Em primeiro lugar, rejeita-a com a sua própria maneira de agir. Age como alguém que não se preocupa minimamente com o prestígio. De facto, ao ler os evangelhos, fica-se com a impressão clara de que ele não se interessa pelo que os outros pensam ou dizem dele e da sua maneira de ser e de agir, especialmente aqueles que são escravos da busca da sua própria glória (Jo 5,44).
Assim, se ele decide frequentar a companhia daqueles que não gozam de boa reputação em Israel, não se abstém de o fazer porque os outros murmuram criticando as suas ações. Quando muito, oferece-lhes uma oportunidade de reflexão, apontando as razões mais profundas das suas ações (Lc 15,1-3).
É o que se vê, por exemplo, no caso do chamamento de Levi, o publicano, em que o convida a segui-lO (Mc 2,16-17), ou quando vai almoçar a casa de Zaqueu, o chefe dos publicanos (Lc 19,7-10), ou no caso em que a mulher pecadora que lhe lava os pés em casa de Simão, o fariseu (Lc 7,39-47). E, de uma forma mais geral, quando os escribas e fariseus murmuram porque ele recebe em sua casa publicanos e pecadores e come com eles (Lc 15,1-2).
Mas mesmo quando o acusam maliciosamente de ser “glutão e bebedor de vinho” (Mt 11,19), Ele não se ofende por a sua honra ser ultrajada, mas queixa-se da insensibilidade “daquela geração” perante o que Deus está a fazer através das suas intervenções, sobretudo a favor dos excluídos. Algo semelhante acontece quando, na presença dos seus exorcismos, alguns escribas de Jerusalém o acusam: “tem um espírito maligno” (Mc 3,30). Com uma serenidade desprendida, convida-os a raciocinar, e a não permanecer naquele estado de fechamento que os impede de perceber a ação do Espírito Santo que se realiza diante dos seus olhos.
Os seus próprios adversários parecem ter reconhecido esta independência em relação ao condicionamento do prestígio, se tivermos em conta o que lhe dizem quando se aproximam dele para lhe perguntar, com estudada malícia, se é lícito pagar o tributo a César: “Mestre, sabemos que […] não te deixas influenciar por ninguém, pois não olhas à condição das pessoas” (Mt 22,16).
Mas, para além de se comportar soberanamente livre de prestígio e de “estatuto”, parece ter denunciado duramente a conduta daqueles que, pelo contrário, vivem para o prestígio e a admiração dos outros. O evangelho segundo São Mateus atribui-lhe frases muito fortes a este respeito: “Tudo o que fazem é com o fim de se tornarem notados pelos homens. Por isso, alargam as filactérias e alongam as orlas dos seus mantos. Gostam de ocupar o primeiro lugar nos banquetes e os primeiros assentos nas sinagogas. Gostam das saudações nas praças públicas e de serem chamados ‘mestres’ pelos homens” (Mt 23,5-7).
Através destas frases, podemos ver que, nesta atitude de procura da própria glória, que gera uma convivência injusta e anti-fraterna, Jesus vê uma das formas mais refinadas de escravatura.
Mostra também que sabe que isso significa viver como escravo daquilo a que a Bíblia chama, mais de uma vez, “preferência de pessoas” (Rm 2,11; Ef 6,9; etc.). Fazer “preferência de pessoas” significa ter em conta a “máscara” que as pessoas usam sobre si mesmas, que é “mais” do que a sua genuinidade pessoal.
Pelo seu modo de atuar, para Jesus, pelo contrário, cada pessoa é importante por si mesma, e não pelos títulos ou méritos que possui. É assim que ele trata as pessoas. De facto, trata com especial ternura e solicitude os mais humildes, isto é, os que não têm “estatuto” em Israel, porque vê neles seres humanos necessitados de ajuda e de apoio.
Mas não exclui os “grandes”, os que gozam de prestígio e honra, porque também eles precisam de ajuda. E acolhe-os também por serem tais, não por terem prestígio e honra. A eles, então, dirige uma palavra programática: “Em verdade vos digo: Se não voltardes a ser como as criancinhas, não podereis entrar no Reino do Céu. Quem, pois, se fizer humilde como este menino será o maior no Reino do Céu” (Mt 18,3-4).
Tornar-se como as crianças não significa ter a inocência das crianças, como por vezes se entendeu, nem adquirir a sua doçura ou simplicidade, que tantas vezes nos falta. Nem se trata apenas de cultivar em si a confiança radical que os filhinhos costumam ter nos seus pais, que também é absolutamente necessária naqueles que entram em relação com o Deus do reino. Significa, antes, desfazer-se da máscara que a ânsia de honra e de prestígio, numa palavra, de “estatuto”, cria no homem. É ser, como Ele, verdadeiramente livre.

(NPG 2004-07-39)

Artigos Relacionados