Partiu em 1957 para Timor-Leste. Dizia que foi missionário por obediência mas nunca mais deixou o povo timorense. Foram 61 anos de vida missionária.
O Pe. João de Deus Pires, missionário salesiano, faleceu dia 22 de setembro de 2019 no Hospital Guido Valadares em Díli, onde estava internado devido ao agravamento do seu estado de saúde, debilitado há vários meses.
Nasceu a 15 de abril de 1928, em Morais, Macedo de Cavaleiros, aldeia pobre e humilde. Ali fez a instrução primária. Seguiu-se o seminário e o contacto com Dom Bosco. “Aquele que me descobriu primeiro. Em Morais nunca tinha ouvido falar de Dom Bosco”, recordava numa entrevista ao Boletim Salesiano em 2010. Era desejo da sua Mãe ter um filho sacerdote. Entre os seis irmãos, Dom Bosco ouviu as suas orações e, de maneira providencial, o jovem João de Deus entrou no seminário de Mogofores. Passados dois anos, muda-se para Poiares da Régua, onde conhece o Pe. Manuel Preto e o irmão leigo José Ribeiro. Andava no 4.º ano quando ouviu dizer que eles iam, como missionários, para Timor. De novo em Mogofores, entra no noviciado, onde tem o Pe. Afonso Nacher como “Mestre” de noviços. Anos mais tarde, encontrar-se-iam também como missionários em Timor. Fez os estudos de filosofia no Estoril e a “assistência” nas Oficinas de S. José, Lisboa, e cursou teologia durante quatro anos em Barcelona.
Na mesma entrevista declarava ser missionário por obediência religiosa aos superiores. “Nunca pensei em ser missionário”. Chegou a Timor-Leste a 4 de janeiro de 1958. Nunca mais abandonou o povo timorense. Voltou a Portugal muito esporadicamente, apenas para descanso ou para receber tratamentos médicos.
Em 1975, com a guerra civil, o governo português ordenou a evacuação imediata de todos os missionários católicos de Timor-Leste, mas o padre João de Deus decidiu permanecer no país. Durante os mais de 26 anos da ocupação de Timor-Leste pelos indonésios sofreu com o povo timorense, foi ameaçado, agredido e foi feito prisioneiro. Não queria usar a batina na rua como forma de defesa. “Queria ser tratado como timorense e como homem”, afirmou. Esteve do lado da resistência timorense, ajudando os guerilheiros que se escondiam nas montanhas da ilha com mantimentos, lonas na época das chuvas, canetas e papel para escrever, dinheiro para medicamentos…
Xanana Gusmão, líder da resistência e antigo Presidente da República de Timor-Leste, deu-lhe o nome de código Liras, que significa asas para voar. Comunicavam clandestinamente, só se conheceram depois da independência.
Foi condecorado quer pelo Presidente da República Portuguesa, Jorge Sampaio atribuiu-lhe o grau de Comendador da Ordem do Mérito em 2004, quer pelo Presidente da República Democrática de Timor-Leste, de quem recebeu a Medalha da Ordem Dom Martinho Lopes em 2012, pelo apoio à Resistência Timorense e contributo relevante à luta pela independência.
O Pe. João de Deus, em seis décadas de vida em Timor-Leste, batizou mais de 85 mil timorenses, entre os quais o primeiro Arcebispo metropolitano D. Virgílio do Carmo da Silva (ver página 30), o atual Primeiro-Ministro, Taur Matan Ruak, além de ministros, deputados e outras figuras públicas da sociedade timorense.
Pode ser considerado um abençoado de Deus, atendendo àquilo que encontrou em Timor quando chegou e ao que conseguiu realizar: a comunidade cristã era quase inexistente, não havia salesianos timorenses e o território era uma colónia portuguesa. Construiu igrejas, escolas, orfanatos. Com os restantes, poucos, missionários salesianos em Timor-Leste, ajudou a implantar e a crescer a presença salesiana em Baucau, Fatumaca, Fuiloro, Laga, Los Palos, Maliana, Quelicai e Venilale. Hoje os Salesianos de Timor-Leste são mais de 180.
A Província Portuguesa comunicou a morte do Pe. João de Deus Pires aos Irmãos, recordando que “pela sua extrema dedicação, granjeou o respeito, a admiração e até a veneração do povo timorense, contribuindo de forma notável para a sua evangelização e para a consolidação da presença salesiana naquelas terras”.
“O seu papel fica marcado na história de Timor-Leste, aquando da ocupação indonésia, numa altura em que se deu a queda das bases de apoio e em que o padre João de Deus envidou todos os seus esforços na assistência prestada à população, capturada e rendida, que estava a enfrentar, nos anos de 1979 e 1980, as mais precárias situações de fome e doenças”, lê-se na nota de pesar emitida pelo Governo de Timor-Leste.
No seu funeral, presidido pelo Bispo de Baucau, D. Basílio do Nascimento, foi homenageado pelo povo.
“A Família Salesiana de Timor está de luto por este missionário lendário que mudou a vida de tantos timorenses com o seu humilde serviço de bom pastor. Rezamos para que o seu testemunho de vida missionária inspire os jovens de Timor-Leste a oferecer a vida ao serviço do Evangelho”, escreveu a Secretaria Provincial de Timor-Leste no comunicado da morte.
Publicado no Boletim Salesiano n.º 577 de Novembro/Dezembro de 2019